Sermo in VI dominica post Pentecosten

Bethlehem a Brasilia, 12 julii A.D. 2020

Por Pe. Ivan Chudzik, IBP.

A vida espiritual não é como um título que se negocia

Ave Maria.

Divino Menino Jesus.

Nossa Senhora do Carmo.

São José.

Santo Antônio de Lisboa.

Caros fiéis, um importante liturgista do século passado chamou o VI domingo após Pentecostes de “Missa verdadeiramente pascal”, e assim devemos considerar a Epístola e o Evangelho da Missa, como uma verdadeira catequese acerca do Batismo e da Eucaristia, que prolonga e desenvolve as intruções que recebemos da Igreja ao longo da Páscoa.

Antes de tudo, convém dizer que o trecho que serve de Epístola para a Missa é um dos mais ricos dentre todos os escritos de São Paulo. O apóstolo recorda a necessária conexão entre os Sacramentos e a Paixão de Nosso Senhor, e especialmente entre o Batismo e a Paixão quando diz: “Fomos, pois, sepultados com ele na sua morte pelo batismo para que, como Cristo ressurgiu dos mortos pela glória do Pai, assim nós também vivamos uma vida nova.” (Rom. VI, 4)

É preciso recordar-se sempre, caros fiéis, que o Batismo e os demais Sacramentos foram instituídos por Nosso Senhor, não pela Igreja; a Igreja pode ter instituído os ritos que servem de preparação e de adorno aos Sacramentos; mas no coração de cada rito há um Sacramento instituído pelo próprio Salvador, não pela Igreja. Quando a Igreja celebra um Sacramento, ela não quer apenas celebrar uma cerimônia santa, um rito piedoso e belo, ela quer conferir uma graça por meio dos ritos, e esta graça—da qual os ritos são canais e instrumentos—, esta graça é uma aplicação dos méritos da Paixão de Nosso Senhor, ou seja: o que Nosso Senhor nos mereceu no Sacrifício da Cruz, a Igreja nos aplica quando celebra os Sacramentos. Isto quer dizer que os Sacramentos são uma verdadeira participação à Paixão de Nosso Senhor, são efeitos do Sacrifício da Cruz, como se os Sacramentos fossem rios por onde o Salvador nos dá de beber da Sua vida divina.

Dito isso, retomemos as palavras de São Paulo: “Fomos, pois, sepultados com ele na sua morte pelo batismo para que, como Cristo ressurgiu dos mortos pela glória do Pai, assim nós também vivamos uma vida nova.” O efeito próprio do Batismo, a graça própria do Batismo é nos associar misticamente à morte e ressurreição de Jesus Cristo. Recordemo-nos que, pelo pecado de Adão—o pecado original—nós herdamos uma natureza humana ferida, isto é, enferma por causa da desordem das paixões, e além de ferida espoliada, isto é, roubada em seus dons divinos, especialmente a graça santificante. Sem a graça santificante e sem o dom da integridade, o homem herda um estado de inimizade com Deus e de desordem das paixões, e neste estado ele pode perseverar pelos seus pecados próprios e atuais. Tal estado de inimizade e de pecado é o que São Paulo chama de “homem velho”, ou seja, uma vida que é muito mais morte do que vida, e da qual devemos abdicar pelo Batismo.

A Paixão e Morte de Nosso Senhor na Cruz, além de ser o testemunho eloquente e admirável do amor imenso de Deus pelo gênero humano, além de propiciar-nos um tesouro infinito de graças, além de ser o máximo ato de culto d’Aquele que é o Sacerdote e a Vítima perfeita, em suma, a Paixão e Morte de Nosso Senhor representa também a morte do “homem velho”, a morte do “velho Adão”, porque a sentença de morte que o Salvador assume era nossa. Expirando na Cruz, o Autor da vida não morre definitivamente, mas conduz à sepultura o “velho Adão”, conduz à sepultura a nossa sentença de morte.

Por esta razão, caros fiéis, o Batismo é uma participação à Paixão de Nosso Senhor, o Batismo é a nossa configuração à Sua Paixão e Morte, porque o batizado morre também, mas morre misticamente, uma vez que o Sacramento apaga o pecado original e eventualmente os pecados atuais—no caso do Batismo dos adultos. O batizado não pode participar dos efeitos salvíficos da Paixão e Morte de Nosso Senhor sem morrer também ao “velho homem”, sem ter destruído em sua alma o princípio da inimizade com Deus, que é o pecado.

A morte mística do Batismo é devidamente representada no Sacramento. Afinal, “batismo”, em grego, quer dizer “imersão”. A imersão na água constitui o sepultamento do “homem velho”, a configuração do batizado à Morte de Nosso Senhor. Ainda que o Batismo seja celebrado no Rito Romano por efusão, isto é, por um simples derramamento de água sobre o batizado, esta forma representa suficientemente o efeito do Batismo, na medida em que representa o banho espiritual produzido pelo Sacramento, e porque a água que se derrama sobre a cabeça do batizado e a cobre não deixa de representar o corpo de Nosso Senhor ocultado pelo sepultura.

Mas se a Morte do Salvador não foi definitiva, porque Ele conduziu ao sepulcro a nossa sentença de morte para em seguida triunfar sobre o “velho Adão” ressuscitando dos mortos, então o Batismo não pode ser uma configuração unicamente à Morte; deve ser também uma configuração à Ressurreição de Nosso Senhor. Assim como o batizado é imergido nas águas, como imagem da sepultura do “velho homem”, ele deve ser retirado, emergido das águas, como imagem do nascimento do “novo homem”, um homem reformado na graça de Deus e configurado à santíssima Pessoa de Jesus Cristo. Por esta razão, o Batismo é uma regeneração espiritual, pois a infusão da graça santificante torna-nos filhos adotivos de Deus, participantes da Sua vida divina, herdeiros do Céu e concidadãos dos Anjos e dos Santos. Dito isso, retomemos uma terceira vez as palavras de São Paulo, que agora compreendemos com maior clareza: “Fomos, pois, sepultados com ele na sua morte pelo batismo para que, como Cristo ressurgiu dos mortos pela glória do Pai, assim nós também vivamos uma vida nova.”

Esta “vida nova” em Jesus Cristo, caros fiéis, também deve ser bem compreendida. O batizado não pertence a Nosso Senhor, não está sujeito a Nosso Senhor como o escravo ao seu dono, como o servo feudal ao seu senhor, ou como o soldado que presta juramento ao general; o batizado não pertence a Nosso Senhor tampouco como um templo, uma igreja que é consagrada pelo rito de consagração. Todos estes exemplos são insuficientes para exprimir a graça própria do Batismo. Na verdade, pelo Sacramento do Batismo, o cristão é incorporado a Nosso Senhor; ao entrar nas águas do Sacramento, o cristão sepulta o “homem velho” e é imergido na Pessoa de Jesus Cristo, tornando-se membro d’Ele, verdadeiramente incorporado à Sua Pessoa, tendo em comum com Ele a mesma crucifixão, morte e ressurreição, da qual o Sacramento faz-nos participar. Donde a conclusão de São Paulo: “[…] vós também considerai-vos mortos ao pecado, porém vivos para Deus, em Cristo Jesus.” (Rom. VI, 11)

Notemos bem, caros fiéis, os termos de São Paulo. Devemos nos considerar “mortos ao pecado”, ou seja, o católico foi sepultado ao pecado para não mais retornar a uma vida que mais se assemelha à morte, a uma vida que é garantia de morte eterna. Devemos nos considerar, ademais, “vivos para Deus em Cristo Jesus”, ou seja, não apenas a vida da graça nos vem de Jesus Cristo, mas sendo Ele a fonte desta vida, o Cabeça de quem somos membros, temos por obrigação crescer nesta incorporação e assimilação, desenvolver em nossa natureza humana este princípio vital que é a graça, para viver a cada instante e a cada dia mais e mais desta vida.

Infelizmente, porém, é muito frequente que mesmo entre os católicos praticantes a vida espiritual não seja vivida como o crescimento de um organismo, como o desenvolvimento de um princípio vital, como o enraizamento e a assimilação de uma natureza na outra. Infelizmente não vivemos a vida espiritual como a nossa incorporação progressiva em Jesus Cristo, até que toda a nossa natureza em todas as suas operações possa viver n’Ele, imersa n’Ele, ou como diz São Paulo: “Porque estais mortos e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus.” (Col. III, 3) Pelo contrário, vivemos a vida espiritual em termos meramente jurídicos, como algo exterior a nós, como algo que se passa fora de nós. O estado de graça e o estado de pecado parecem ser um mero título da qual a nossa consciência dá-nos notícia. Este título terá valor efetivo somente na eternidade, e enquanto isso, podemos vendê-lo e comprá-lo à vontade, na medida em que o estado de graça ou o estado de pecado trazem-nos estas ou aquelas vantagens. Passamos do estado de graça para o estado de pecado, e do fervor à tibieza como quem negocia títulos na bolsa, isto é, bens exteriores a si mesmo. Em última instância, queremos morrer em estado de graça, mas enquanto durar esta vida, parece-nos que o fervor e mesmo o estado de graça não convém a todos os momentos, parece-nos que às vezes convém cometer alguns pecados veniais e mortais, na medida em que temos a ilusão de procurar alguma “vantagem” presente com tais desordens.

Não, caros fiéis, a vida espiritual não deve ser vivida em termos meramente jurídicos, como títulos que se negocia na bolsa. A vida espiritual é a nossa incorporação, nosso enraizamento, nossa imersão, nossa assimilação em Jesus Cristo; ela é como um organismo, infundido desde o Batismo para crescer, desenvolver-se e aperfeiçoar-se o tanto quanto isso for possível. Assim como nós somos contra a interrupção assassina da vida humana pelo aborto, do mesmo modo, o pecado mortal é o aborto da vida da graça, é a expulsão deste princípio vital pelo qual Deus mora em nós. Ainda que o Sacramento da Penitência venha devolver a vida da graça em nossa alma, Deus não nos infunde a Sua graça para produzir uma deformidade, uma monstruosidade na ordem sobrenatural, isto é, Deus não nos infunde a Sua graça para que a vida da graça seja interrompida inúmeras vezes pelos pecados graves e paralisada incontáveis vezes pelos pecados veniais voluntários. Somente um louco plantaria inúmeras vezes as sementes de uma planta para arrancá-la assim que surgir o broto; somente um louco cuidaria com zelo de um galinheiro para depois lançar fora todos os ovos e entregar as galinhas aos lobos; somente uma mãe desnaturada e enlouquecida tentaria matar seu filho assim que nascesse. Pois a loucura de uns e outros não se compara à nossa loucura quando expulsamos a vida de Deus em nós, tratando-a com um desprezo que não costumamos ter sequer com as plantas e os animais. Esta é a nossa miséria, caros fiéis: Deus quer fazer de nós Seus filhos, quer nos incorporar e assimilar à Sua vida divina; e nós nos fazemos inferiores aos animais brutos porque desprezamos o estado de graça, não fazendo caso do tesouro infinito que carregam consigo.

Mas consideremos também o Evangelho desta “Missa pascal”. Nosso Senhor disse: “Tenho compaixão deste povo. Já há três dias perseveram comigo e não têm o que comer.” (Mc. VIII, 2) Não apenas aquela multidão seguia e ouvia a pregação do Salvador; também nós seguimos e ouvimos Nosso Senhor porque não queremos viver uma vida completamente desgarrada do Pastor das nossas almas, não queremos viver uma vida completamente separada da Casa de Deus e das coisas de Deus. Também nós seguimos e ouvimos Nosso Senhor e, à semelhança daquela multidão, temos fome. Seguimos e ouvimos o Pastor das nossas almas com fome, sendo que Ele é o Pão da vida eterna.

Caros fiéis, é uma graça que estejamos aqui, na casa de Deus, ouvindo a Palavra de Deus e procurando viver conforme a lei de Deus. Mas Nosso Senhor teme despedir-nos com fome, como ouvimos no Evangelho: “Se os despedir em jejum para suas casas, desfalecerão no caminho; e alguns deles vieram de longe!” (Mc. VIII, 3) É uma graça que estejamos na casa de Deus, ouvindo a Palavra de Deus, mas sejamos sinceros: não viemos de tão longe, não abandonamos uma vida de pecado para vivermos uma vida de meros ouvintes da Palavra de Deus, de meros expectadores da Liturgia, de meros frequentadores da casa de Deus. Não viemos de tão longe para voltarmos em jejum para as nossas casas, porque desfaleceremos no caminho. Por nós mesmos não teremos força para remediar as desordens das paixões e vencer as seduções do mundo e as tentações do demônio. Podemos nos esquivar pontualmente desta ou daquela queda, mas sem a graça de Deus é impossível resistir a todas as desordens, seduções e tentações dos inimigos da nossa alma.

Não viemos, portanto, de tão longe para para vivermos uma vida de meros ouvintes da Palavra de Deus, de meros expectadores da Liturgia, de meros frequentadores da casa de Deus. A vida da graça, que foi-nos infundida no Batismo, precisa ser nutrida, precisa crescer, desenvolver-se, aperfeiçoar-se; a vida da graça precisa enraizar-se em todas as nossas operações; a vida da graça precisa assimilar-nos e incorporar-nos progressivamente em Jesus Cristo; Jesus Cristo precisa ser formado em nós e nós precisamos ser reformados e regenerados mais e mais em Jesus Cristo. Para tanto, Nosso Senhor não nos multiplica desta vez o pão que alimenta o corpo, mas o pão que alimenta a alma; desta vez, Nosso Senhor multiplica-nos a Eucaristia e quer que comunguemos da Eucaristia até a saciedade, pois como ouvimos no Evangelho: “Comeram e ficaram fartos” (Mc. VIII, 8) Quem comunga em estado de graça, com reta intenção e devidamente preparado faz uma boa Comunhão, sacia a sua alma com a vida que jorra do Coração aberto de Nosso Senhor e recebe do Sacramento as forças necessárias para não desfalecer, mas para combater, para crescer e desenvolver a vida de Deus em sua alma.

Tenhamos compaixão da nossa alma, caros fiéis, como Nosso Senhor Se compadeceu dela, multiplicando os pães para depois multiplicar a Eucaristia. Tenhamos compaixão da nossa alma. Façamos boa confissão e não tardemos mais. Façamos boa Comunhão e comunguemos tantas vezes quanto pudermos durante a semana, porque Nosso Senhor não instituiu os Sacramentos para que entremos e saiamos da casa de Deus com a alma em jejum. Façamos boa confissão, façamos boa Comunhão.