Sermo in VIII dominica post Pentecosten

Bethlehem a Brasilia, 26 julii A.D. 2020

Por Pe. Ivan Chudzik, IBP.

As quatro dívidas para com Deus e o modo de pagá-las

Ave Maria.

Divino Menino Jesus.

Nossa Senhora do Carmo.

São José.

Santo Antônio de Lisboa.

Caros fiéis, a parábola do administrador infiel, que ouvimos no Evangelho deste VIII domingo após Pentecostes, é a de mais difícil interpretação de todas as parábolas. O próprio São Jerônimo, que a Igreja elogia como o “doutor máximo” da Sagrada Escritura, obrigou-se a escrever ao Papa São Dâmaso para pedir-lhe elucidações. Alguns comentadores, porém, vencidos pela obscuridade da parábola, declararam que era impossível conhecer o seu verdadeiro sentido. Tamanha dificuldade para se conhecer o sentido de uma parábola do Evangelho deve servir de lição para que tenhamos grande prudência na leitura da Sagrada Escritura, cujo sentido autêntico somente o Magistério da Igreja pode nos dar, e não a simples leitura particular, como pretendem os protestantes.

O impasse da parábola do administrador infiel consiste no aparente elogio de Nosso Senhor à astúcia do administrador. Conforme ouvimos no Evangelho, o administrador, sabendo que será destituído do seu emprego, procura os devedores do seu patrão, um por um, para reduzir injustamente a dívida de cada um deles. O patrão, então, ao saber o que tinha feito o administrador, elogia a arte da sua astúcia porque, ao reduzir as dívidas alheias ele adquiriu amigos entre os devedores, a fim de ter onde ser recebido após a demissão. Portanto, quando o Evangelho diz que “[…] o proprietário admirou a astúcia do administrador” (Lc. XVI, 8), nem o proprietário da parábola e tampouco Nosso Senhor elogiam um pecado. O Evangelho não faz o elogio da injustiça do administrador, mas reconhece uma certa habilidade, uma certa arte na sua malícia. Em outras palavras, ao executar uma ação má, o administrador serviu-se muito astutamente dos meios de que dispunha a fim de não cair em desgraça após a demissão.

Apoiando-se na malícia do administrador da parábola, Nosso Senhor conclui: “[…] porque os filhos deste mundo são mais prudentes do que os filhos da luz no trato com seus semelhantes.” (idem) A “prudência” de que trata o Salvador não é certamente a virtude da prudência, mas uma mera semelhança com a prudência, o que São Paulo chama de “prudência da carne” (cf. Rom. VIII, 6). A prudência da carne, caros fiéis, é própria dos que fazem dos bens deste mundo o fim da existência, o sentido da vida, e assim ordenam todas as coisas de que dispõe para atingir este fim. Ou seja, mesmo que a parábola seja das mais misteriosas, o seu sentido essencial está garantido pela conclusão de Nosso Senhor: os pecadores usam de mais habilidade para cometer o pecado—é a “prudência da carne”—do que os justos usam de zelo para praticar as boas obras.

De fato, é digno de vergonha e confusão que a prudência sobrenatural dos convertidos perca para a falsa “prudência da carne” dos pecadores, pois enquanto estes empregam de tanta habilidade para fugir de pequenos males e obter bens passageiros, os convertidos, por sua vez, deveriam dar provas de uma diligência e de um zelo ainda maiores para fugir da condenação eterna e alcançar uma maior coroa de glória no Paraíso.

Por essa razão, São Paulo diz na epístola da Missa: “[…] não recebestes um espírito de escravidão para viverdes ainda no temor, mas recebestes o espírito de adoção pelo qual clamamos: Aba! [que quer dizer] Pai!” (Rom. VIII, 15) Aquele que serve a Deus com “espírito de escravidão”, por temor servil, por simples medo da condenação eterna, certamente não avança muito na vida espiritual, na medida em que procurará cumprir apenas o estritamente necessário para não cair no inferno, enquanto que nas demais coisas preferirá viver conforme a vontade própria. Em contrapartida, aquele que serve a Deus conforme este “espírito de adoção”, reconhece que a maior obra do “serviço de Deus” é a própria caridade: não somos apenas criaturas que servem o Criador; fomos adotados filhos pela graça e devemos amar de todo o coração o Pai que nos adotou.

Isso significa, caros fiéis, que só avançaremos na vida interior, na vida espiritual, se tivermos uma justa noção daquilo que devemos a Deus. Precisamos conhecer nossas dívidas para com Deus para abandonar a mediocridade do “espírito de escravidão” e adquirir o fervor do “espírito de adoção”.

Nossa primeira dívida adquirimos pela própria criação: tudo o que somos deriva de Deus, absolutamente tudo. Nenhuma outra verdade pode ser mais fundamental do que essa: nós fomos criados por Deus a partir do nada e não há nada que seja propriamente nosso; tudo nos foi dado gratuitamente, sem nenhum mérito da nossa parte; e apesar de ser a nossa verdade mais fundamental é a mais esquecida, porque como a nossa natureza é o que temos de mais íntimo, ao contrário daquelas coisas que encontram-se fora de nós, como o alimento ou as vestimentas, como a nossa natureza é o que temos de mais íntimo, parece-nos que ela é propriedade nossa. Donde as palavras de São Paulo: “Que é que possuis que não tenhas recebido? E, se o recebeste, por que te glorias, como se o não tivesses recebido?” (I Cor. IV, 7) O esquecimento da nossa profunda e radical miséria, o esquecimento do nosso nada é causa de grandes males, porque o orgulhoso, cheio de si, irá lançar-se em uma vida de pecados, o orgulhoso terá por regra de vida a “prudência da carne”, porque não enxerga outro fim para além da saciedade das suas paixões. Pelo contrário, nós deveríamos comparar a nossa existência à de um montanhista suspenso por uma corda sobre um profundo abismo, sendo que a corda se desfia progressivamente; o montanhista sabe que a corda irá ceder; o montanhista sabe que ele irá cair no abismo profundo; o montanhista sabe que de nada adianta tentar se salvar por suas próprias forças porque qualquer movimento brusco pode arrebentar a corda; o montanhista sabe que ele tem pouco tempo para gritar por ajuda, pois se ele gritar, certamente será ouvido por aqueles que faziam a escalada com ele. Mas o montanhista também sabe que fechar os olhos e imaginar que o precipício não existe, que a corda não irá ceder e que ele pode se salvar por suas próprias forças, em suma, fechar os olhos e recusar-se a admitir o perigo grave e iminente no qual se encontra certamente seria uma insanidade. Pois a vida da maioria dos nossos contemporâneos, caros fiéis, é exatamente assim, insana. Estamos todos diante do abismo da morte, a corda do tempo se desfia dia após dia, hora após hora e nós precisamos o quanto antes fazer uso dos auxílios que a Providência põe à nossa disposição para obter a salvação; e apesar disso, os mundanos preferem fechar os olhos e sonhar tranquilamente com uma vida conforme as paixões sem consequências más.

Nossa segunda dívida adquirimos por causa de nossos pecados. Enquanto Deus é um Pai amoroso e benevolente, de Quem recebemos absolutamente tudo—desde o ar que respiramos até a inteligência e o livre-arbítrio—, nós, miseravelmente, devolvemos ofensas ao Seu amor e liberalidade. Os mundanos fazem dos seus instintos verdadeiros ídolos; os batizados, quantas vezes, transitam entre a idolatria do pecado e a vida da graça; e mesmo entre os fervorosos o orgulho consegue se alojar sutilmente na prática das boas obras. Nós, miseravelmente, devolvemos ofensas ao amor e à liberalidade de Deus. Ofender gravemente a Deus, caros fiéis, não significa apenas infringir uma lei, contrariar uma simples regra; não devemos ter uma noção positivista e legalista do que seja o pecado. O pecado grave consiste, como ensina Santo Agostinho, na aversão de Deus e na conversão completa para a criatura: o pecador substitui Deus pela criatura quando comete o pecado grave; e de tal modo ele gostaria de substituir Deus que, se o pecador pudesse, ele destruiria Deus, para poder usufruir da sua idolatria em plena liberdade. Nenhum de nós, caros fiéis, teria a ousadia de pisotear um crucifixo; nenhum de nós teria a ousadia de cuspir numa imagem santa como sinal de profundo desprezo. Pois é preciso saber que o pecado grave é uma irreverência infinitamente maior do que pisotear ou cuspir nas imagens santas; o pecado grave atenta contra Deus mesmo, porque expulsa o Espírito Santo da nossa alma. Portanto, caros fiéis, nossa segunda dívida para com Deus deriva da desgraça de termos expulsado Deus da própria alma, de termos expulsado o Criador da criatura rebelde, de termos erigido uma paixão desordenada à categoria de ídolo, desprezando o Criador e vivendo como se Ele não existisse. Nossos pecados adquiriram uma dívida de reparação que não pagaremos sem a penitência.

Nossa terceira dívida adquirimos por causa da Encarnação. Desde o mistério do nascimento de Nosso Senhor e especialmente por causa da Sua Paixão devemos não apenas a adoração ao Criador, a reverência à Majestade divina, que criou-nos a partir do nada. Devemos mais que o culto de adoração, ato que integra a chamada virtude de religião. Devemos mais que o culto de adoração, devemos o exercício da caridade, esta virtude sobrenatural que recebemos no Batismo para amar a Deus com o amor pelo qual Ele Se ama a Si mesmo. Pela caridade, caros fiéis, nós participamos do próprio amor com que as Pessoas divinas da Santíssima Trindade Se amam. Pela caridade, o amor divino circula em nós e dá um sentido, uma ordenação sobrenatural mesmo às nossas mais simples ações. Todavia, não devemos apenas adoração—pois somos criaturas—, não devemos apenas caridade—pois somos filhos adotivos—, porque devemos praticar a caridade em conformidade ao mistério da Encarnação, especialmente ao mistério da Paixão. Ninguém manifestou mais caridade do que Jesus Cristo; nenhum outro coração esteve mais consumido de caridade do que o Coração de Jesus. Deus não nos deu o dom da caridade para sermos filhos distantes do Pai; na verdade, Ele nos deu tanto o dom da caridade quanto o modelo supremo, o Coração de Jesus. Portanto, quando Nosso Senhor paga, em nosso lugar, nossa dívida de adoração e de reparação sobre a Cruz, Ele nos obriga a uma terceira dívida, uma dívida de caridade, o dever de imitar o Seu Coração, de conformar a nossa vida à Sua vida, os nossos afetos aos Seus afetos, os nossos pensamentos aos Seus pensamentos, a nossa vontade à Sua vontade, o nosso coração ao Seu Coração, a nossa pessoa à Sua Pessoa divina. Todos os trabalhos, sofrimentos, dores e angústias do Salvador, todas as Suas virtudes e exemplos, toda a Sua vida de oração e de mortificação, toda a Sua pregação, Seus milagres, Seu poder contra o demônio; em suma, tudo na vida de Jesus Cristo é para nós, Ele tudo fez para ensinar-nos e alcançar-nos a graça de sermos filhos à imagem d’Ele, cujo Coração é manso e humilde. Nosso Senhor nos redime do cativeiro do demônio, que é o cativeiro dos nossos vícios, para fazer-nos escravos de amor, isto é, filhos devotados, filhos sem interesse próprio, filhos cujo único interesse é agradar ao Pai à imagem do Coração de Jesus. Nossa terceira dívida, portanto, caros fiéis, consiste na própria caridade, dívida que nunca é paga suficientemente até que a criatura tenha dado tudo a Deus para ser consumido pela caridade.

Por fim, nossa quarta dívida adquirimos por causa do Paraíso. O exercício da caridade já é a nossa felicidade sobre a terra, porque pela caridade a alma possui Deus de fato; Deus mora na alma de quem vive na graça, e não existe felicidade maior sobre a terra do que viver em paz de consciência, na graça santificante. A felicidade da graça só pode ser superada pela felicidade da glória eterna, quando os justos verão a Deus face a face para sempre. A quem viver e morrer na graça santificante, Deus promete a luz da glória; a quem tiver vida de oração e de mortificação, a quem praticar as virtudes e suportar pacientemente os sofrimentos, a quem não se iludir com as vaidades do mundo e não ceder às tentações, a este Deus promete a luz da glória para sempre. Portanto, nossa quarta dívida consiste em adquirir a felicidade que Deus nos reserva na outra vida, em não substituir a suma felicidade da glória eterna pelas vaidades passageiras da vida presente. Nosso Senhor sofreu muitíssimo em Sua Paixão para conquistar-nos o Paraíso, e não é possível ganhar o Paraíso sem ganhá-lo na única vida que temos, imitando Jesus Cristo. Temos apenas uma vida, esta única vida, para decidir, com o auxílio de todos os meios que Deus nos dá todos os dias, qual será a nossa eternidade. Se os anjos pudessem desejar algo dos homens, desejariam nossa capacidade de sofrer por amor a Deus; se os eleitos pudessem lamentar algo, lamentariam não terem sofrido de bom grado todos os sofrimentos da vida, porque a recusa de sofrer algumas penas passageiras enviadas pela Providência privou-lhes de uma maior recompensa na eternidade.

Retornemos agora à parábola e lembremo-nos, caros fiéis, que o administrador infiel foi denunciado por ter dissipado os bens do seu patrão (cf. Lc. XVI, 1), e nisso somos semelhantes a tal administrador: o desperdício do tempo, dos meios de santificação, dos sofrimentos, das boas inspirações e de tantas outras graças tornam-nos também administradores infiéis do que a Providência nos deu. Mas o que mais nos ilude é o desperdício de tempo, porque frequentemente queremos fazer as boas obras, porém, queremos fazê-las depois, mais tarde, no outro dia, e assim adiamos continuamente os  nossos deveres como se o tempo fosse ilimitado, como se os nossos dias não estivessem contados. É assim que o demônio conduz muitos fervorosos à tibieza, convencendo-lhes que conseguirão cumprir os seus deveres num tempo futuro, enquanto podem usar do tempo presente para si.

Trata-se esta de uma perigosa ilusão, que devemos combater com dois argumentos. Primeiramente, é falso convencer-se que mais tarde “teremos tempo”, seja porque não há nada mais incerto do que a morte, seja porque o demônio que tenta-nos agora à procrastinação poderá perfeitamente tentar-nos mais tarde com a mesma tentação. Em segundo lugar, não devemos postergar nossos deveres, especialmente a oração, convencidos de que mais tarde “teremos tempo”, pois o tempo que retiramos de Deus para entregá-lo a entretenimentos vãos já constitui uma ofensa a Deus: matar tempo com coisas vãs é desperdiçar a moeda pela qual se adquire o Paraíso, isto é, o tempo, pois, como dizia Santa Elisabete da Trindade, a vida neste mundo é a eternidade começada e sempre em progresso. Matar tempo, caros fiéis, é matar a eternidade, é roubar algo da nossa união com Deus nesta vida que custará caro à nossa eternidade.

Portanto, caros fiéis, não pagaremos as nossas dívidas para com Deus, especialmente a dívida de caridade, matando tempo da única vida que temos. Somos pobres endividados que Nosso Senhor quer enriquecer com as riquezas da caridade; mas a moeda para adquiri-las é bem aproveitar o tempo. As tentações costumam começar com o desperdício do tempo, que não devolvemos para Deus e roubamos para nós. E o demônio nos ensina a roubar o tempo, com pecados leves, para depois separar-nos do Senhor do tempo, pelos pecados graves. Não nos separemos do Senhor do tempo e não separemos o bom uso do tempo das consequências que isto terá para a eternidade. Vigiemos e rezemos, para que Nosso Senhor encontre-nos administradores fiéis dos Seus dons.