Bethlehem a Brasilia, 14 julii A.D. 2019
Por Pe. Ivan Chudzik, IBP.
A caridade e a verdade: remédios contra a justiça e as tradições dos fariseus
“[…] Digo-vos, pois, se vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus.” (Mt. V, 20)
Ave Maria.
Divino Menino Jesus.
Nossa Senhora do Rosário
Santo Antônio de Lisboa.
Caros fiéis, acostumamo-nos, desde a nossa infância, a julgar que os fariseus eram uns “judeus hipócritas”, e que o farisaísmo não passava de um formalismo, isto é, de uma prática exterior da Religião que carecia da virtude da caridade. No entanto, a seita dos fariseus abarca muito mais problemas do que a mera hipocrisia. O caso do farisaísmo inclui uma questão de Fé, e se quisermos compreender as acusações de Nosso Senhor contra os fariseus e se quisermos praticar uma justiça superior à deles, como pede Nosso Senhor, devemos entender, antes de tudo, a gênese e a natureza desta seita judaica.
Ocorre que em 598 a.C., o rei dos caldeus, Nabucodonosor, invadiu Jerusalém, depôs o rei de Israel, Joaquin, e saqueou o Templo, roubando tudo o que havia de precioso nele. No lugar de Joaquin, Nabucodonosor constituiu rei o tio do rei deposto, Matanias, cujo nome foi mudado pelo rei babilônico para Sedecias. Diz a Sagrada Escritura que Sedecias “fez o mal aos olhos do Senhor” (II Rs. XXIV, 19), que ele não escutou os oráculos do Senhor transmitidos pelo profeta Jeremias (cf. Jr. XXXVII, 2), que não se humilhou diante do profeta (cf. II Cr. XXXVI, 12) e que manteve o coração endurecido para não se converter ao Deus de Israel (v. 13). A dominação estrangeira sobre Jerusalém e Judá foi permitida por Deus como um castigo à infidelidade não apenas de Sedecias, mas também dos reis precedentes e principalmente a dos sacerdotes. No livro das Crônicas se lê o seguinte: “Todos os chefes dos sacerdotes e o povo continuaram a multiplicar seus delitos, imitando as práticas abomináveis das nações pagãs e profanando o templo que o Senhor tinha consagrado para si em Jerusalém. Em vão o Senhor, o Deus de seus pais, lhes tinha enviado, por meio de seus mensageiros, avisos sobre avisos, pois tinha compaixão de seu povo e de sua própria habitação. Eles zombavam de seus enviados, desprezavam seus conselhos e riam de seus profetas, até que a ira de Deus se desencadeou sobre o seu povo e não houve mais remédio.” (II Cr. XXXVI, 14-16)
Como podemos notar, caros fiéis, a dominação de Nabucodonosor e a invasão do Templo de Jerusalém eram um castigo aos pecados dos sacerdotes, dos reis e do povo, porque haviam misturado a verdadeira Religião com as superstições e idolatrias dos pagãos. Antes que os caldeus invadissem o Templo, os próprios judeus já o haviam profanado com a sua infidelidade. Mas ao invés de compreender que a dominação de Nabuconodosor era um castigo divino, o rei Sedecias se revoltou e quis reagir contra ele. Neste momento, que oráculo fez o profeta Jeremias ao rei de Israel? O Profeta lhe disse para se entregar e não se revoltar mais contra Nabucodonosor. Que ele aceitasse o castigo divino se entregando ao invasor estrangeiro e que desistisse de atacá-lo. No entanto, Sedecias não obedeceu ao profeta Jeremias e se aliou com os egípcios, na esperança de que com os exércitos do faraó poderia derrubar o domínio caldeu. O próprio profeta Jeremias havia avisado o rei Sedecias que os egípcios regressariam para a sua terra (cf. Jr. XXXVII, 7) e não permaneceriam com os judeus no enfrentamento aos caldeus, razão pela qual o rei deveria desistir do contra-ataque e aceitar o castigo. De fato, a obstinação e cegueira do rei lhe mereceu um castigo ainda maior, porque a sua revolta contra Nabucodonosor terminou com a destruição por completo de Jerusalém, com o incêndio do Templo e com a morte de muitos judeus. Os que não haviam morrido no sítio de Jerusalém foram deportados para a Babilônia. E diz a Sagrada Escritura que foi o Senhor que tudo entregou aos caldeus (cf. II Cr. XXXVI, 17), ou seja, era por permissão divina que os caldeus destruíam a cidade santa e profanavam o Templo.
Sem pátria e sem Templo, os judeus em exílio passaram a centrar a prática da Religião no estudo da Lei e no seu cumprimento escrupuloso. Assim surgiram as sinagogas, onde se lia e comentava as Escrituras, uma vez que não era mais possível oferecer o culto litúrgico no Templo. O cativeiro também trouxe outra consequência importante: se até o tempo do exílio eram os sacerdotes os guardiões da Torah, isto é, da Lei dada por Moisés, a partir do exílio começaram a ganhar autoridade e importância certos mestres explicadores da Lei, os sábios ou escribas, os mesmos que tantas vezes aparecem nos Evangelhos. Tais sábios não eram sacerdotes, eram homens do povo, eram leigos, que estudavam e ensinavam a Lei, dirigindo as consciências. O prestígio dos escribas foi tamanho que o povo passou a chamá-los de “Rabbi”, isto é, “meu senhor”; e a interpretação da Torah produzida por tais mestres superou a importância da própria Lei a ser interpretada. O que significa que a dita “Torah oral”, a interpretação e o comentário dos escribas, que eles chamavam de “tradição dos antigos”, obrigava mais a um judeu do que a “Torah escrita”, a Lei de Moisés.
De retorno para a Palestina, após o exílio da Babilônia, o Templo de Jerusalém foi reconstruído graças à proteção de Ciro, rei dos persas. Mas a trégua durou até a invasão dos gregos, sob Alexandre Magno, quando o povo judeu foi tentado a abandonar seus costumes, sua língua e a pureza da Religião para adquirir os costumes dos dominadores gregos. Nesse sentido, a aceitação da influência estrangeira é o que chamamos de helenização. Foi em tal momento da História de Israel que apareceram os fariseus. O farisaísmo, portanto, consistiu no partido que se opunha radicalmente à helenização, e defendia a mais estrita observância da Lei escrita e da Lei oral, ou seja, das “tradições dos antigos”. Os fariseus eram ortodoxos em matéria de doutrina, afirmando a imortalidade da alma, a ressurreição dos corpos e a existência dos anjos, mas pecavam por um certo pelagianismo e um certo messianismo. A grande maioria dos leigos que estudavam e ensinavam a Lei, isto é, os escribas, eram do partido dos fariseus. Em contraposição aos fariseus, havia o partido dos saduceus, estes abertos à helenização e bastante heterodoxos. No entanto, eram os saduceus, heterodoxos e liberais, que acusavam os fariseus de serem inovadores, porque enquanto o saduceu observava única e estritamente a Lei escrita, os fariseus acrescentavam o peso da Lei oral, isto é, das “tradições dos antigos”, que Nosso Senhor também combateu.
Antes de avançarmos em nossa reflexão sobre o farisaísmo, caros fiéis, façamos uma pausa e uma comparação bastante oportuna. Será que não percebemos o quanto a crise de Israel no tempo do exílio se assemelha em muito com a nossa crise? A crise de Israel se principiou sobretudo por causa dos pecados dos sacerdotes, que praticavam ocultamente os cultos egípcios (cf. Ez. VIII, 9-16), e a esta idolatria, superstição, magia e astrologia abominável se juntavam os pecados dos reis e os do povo. E a nossa crise, caros fiéis, de onde ela vem? Vem do Protestantismo, da Revolução Francesa, do Comunismo, do relativismo? A nossa crise se dá pela mesma causa que a dos judeus, isto é, os pecados dos sacerdotes e os pecados do povo, como afirmou o então Papa Bento XVI em viagem a Portugal em 2010. Cito o Papa Ratzinger: “A novidade que podemos descobrir hoje, nesta mensagem [de Fátima], reside também no fato que os ataques ao Papa e à Igreja vêm não só de fora, mas que os sofrimentos da Igreja vêm justamente do interior da Igreja, do pecado que existe na Igreja. Também isso sempre foi sabido, mas hoje o vemos de um modo realmente terrificante: que a maior perseguição da Igreja não vem de inimigos externos, mas nasce do pecado na Igreja, e que a Igreja, portanto, tem uma profunda necessidade de re-aprender a penitência, de aceitar a purificação […].” Caros fiéis, eis a causa real e profunda da crise: o pecado interno dos membros da Igreja, a começar pelos pecados abomináveis de tantos membros do Clero, uma vez que o Papa Bento faz uma sutil menção ao abuso de menores cometido por clérigos. Contrariamente a tantos mestres e formadores de opinião lidos pelos católicos ditos conservadores, Bento XVI diz que a maior perseguição não vem dos inimigos externos, mas dos inimigos internos; e nós colaboramos, de uma certa maneira, com os inimigos da Igreja quando não rezamos, não fazemos penitência e damos pouca importância à vida interior, único meio capaz de apressar a vitória do Coração Imaculado de Maria.
E justamente porque os sacerdotes e o povo pecaram que Israel perdeu o culto do Templo e se tornou cativo dos estrangeiros. Nós também nos tornamos cativos, seja porque muitos cristãos são vítimas de perseguições sangrentas no Oriente, seja porque a Fé católica é vilipendiada por inúmeras ideologias no Ocidente. Nós também perdemos o culto na medida em que a Liturgia católica sofre a sua paixão, o seu eclipse, e hoje já podemos compreender as palavras que o então Cardeal Pacelli, depois Papa Pio XII, pronunciou em 1936: “[…] nas igrejas, os cristãos procurarão em vão a lâmpada vermelha em que Deus os espera. Como Maria Madalena, chorando perante o túmulo vazio, perguntarão: ‘Para onde O levaram?’”
E como o domínio estrangeiro e a extinção do culto do Templo eram um castigo à infidelidade dos sacerdotes e do povo, os judeus deveriam se voltar para Deus, aceitar o castigo e fazer penitência. No entanto, o que fez o rei Sedecias senão buscar uma solução exterior, uma solução política? O rei Sedecias não obedeceu ao oráculo de Jeremias e preferiu fazer aliança com outro povo, o povo egípcio, o que culminou na destruição do Templo e no exílio da Babilônia. Nós também não acreditamos que a solução da crise é espiritual, que ela consiste na conversão, na vida interior e na prática da penitência, e preferimos confiar no ativismo, nas alianças comprometedoras e em toda forma de messianismo político. Não percebemos que o Protestantismo, o Comunismo e todos os inimigos exteriores da Igreja só têm força porque Deus permite, e à medida em que Deus permite. Não percebemos que os inimigos exteriores não passam do flagelo de Deus, do instrumento pelo qual a Providência nos castiga, e enquanto queremos duelar com a mão de Deus voltada contra nós, esquecemo-nos que ela abaixará quando cessarmos de ofendê-Lo e passarmos a amá-Lo.
Voltando ao nosso ponto, enquanto a crise de Israel ocasionou o surgimento das falsas tradições dos escribas, a resistência à influência grega, por sua vez, permitiu a formação do partido dos fariseus. Escribas e fariseus, portanto, são judeus praticantes, são observantes escrupulosos da Lei; contudo, como diz São Paulo: “[…] a letra mata, mas o Espírito vivifica.” (II Cor. III, 6) Escribas e fariseus julgavam servir a Deus e aos interesses de Israel, ambos representavam uma falsa solução.
Mas apesar disso, o farisaísmo foi mais do que uma prática escrupulosa da Torah, foi mais do que uma confiança nas obras em detrimento da graça, foi mais que o exercício hipócrita da Religião. O farisaísmo foi, antes de tudo, o acréscimo de tradições humanas à Lei de Deus, que assumiram uma importância maior do que a própria Lei. O farisaísmo só poderia surgir num tempo em que a autoridade sacerdotal, o culto do Templo e a paz de Israel estavam fortemente abaladas, como hoje, a crise na Igreja atinge o sacerdócio, a Liturgia e a sociedade cristã. O farisaísmo é, portanto, uma falsa doutrina humana sustentada por falsas autoridades humanas.
Dito isso, caros fiéis, por acaso a nossa adesão ao Rito Romano tradicional pode ser tratada de “farisaísmo”, uma vez que não raro se atribui a este Rito uma prática formalista, estereotipada, escrupulosa e inclusive hipócrita da Religião? Somos nós fariseus? Certamente não, caso o exercício da Religião for acompanhado da caridade e da busca da perfeição, e caso não acrescentarmos nenhuma doutrina humana à Tradição da Igreja.
Assim, quando Nosso Senhor diz: “[…] se vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus”, fácil é superar a sua justiça exterior, o cumprimento meramente exterior da Religião, que não pode salvar se não for animado pela virtude da caridade. Não devemos nos preocupar com grandes obras para “superarmos” a justiça dos fariseus; na verdade, a justiça dos fariseus, ainda que seja grande, não salva, porque cumprem obras inventadas pelos escribas e o fazem cheios de vaidade. Para superarmos a justiça dos fariseus, caros fiéis, devemos fazer o itinerário oposto, devemos imitar Santa Teresinha do Menino Jesus, oferecendo a cada instante, nas pequenas coisas, todos os atos de amor que pudermos. Um ato de caridade, por menor que seja, supera toda a justiça dos fariseus, pois a caridade é uma virtude sobrenatural, e portanto é Deus que age em nós. Superemos, caros fiéis, a justiça dos fariseus, renovando, ao longo do dia, nossos bons propósitos, renovando frequentemente o exercício da presença de Deus, confiando a Nosso Senhor cada ação importante e também as pequenas coisas, elevando a mente a Deus nas dificuldades e contrariedades, e pedindo a Nosso Senhor a graça de cumprir a Sua vontade sobretudo quando ela se revela diferente da nossa própria vontade.
E além de agir sob o império da caridade, procurando agradar a Deus mesmo nas pequenas coisas, não seremos fariseus se não acrescentarmos nenhuma doutrina humana, nenhuma tradição humana que venha a macular a nossa sã doutrina católica. Nesse sentido, os católicos sofrem de uma profunda ingenuidade quando julgam que ser “tradicional”, ser um “católico tradicional” é também aceitar com benevolência a cosmovisão dos povos antigos. Se há elementos de verdade na concepção de mundo dos povos, cabe à Igreja identificá-los, separá-los e ordená-los à Fé católica. Não cabe aos fariseus dos nossos tempos, senhores sem autoridade e mestres sem título, ensinar os católicos a encontrarem possíveis elementos de verdade nas tradições dos povos antigos. Tal tarefa cabe principalmente aos doutores católicos, como fizeram nos primeiros séculos os Padres da Igreja. Somente os teólogos católicos podem salvar o que pode ser salvo nas tradições dos antigos, porque por mais que tais tradições pareçam às vezes bem semelhantes com aquilo que lemos na Sagrada Escritura, sobretudo em matéria de simbolismo, é justamente quando um erro é muito semelhante à verdade que ele se torna mais perigoso. E não são poucos os católicos que se expõem a tais perigos, sem capacidade suficiente para discernir a verdade do erro e sem prudência para pedir, antes de tudo, o parecer dos sacerdotes idôneos.
Caros fiéis, afastemo-nos dos falsos doutores, dos falsos profetas, dos novos fariseus dos nossos tempos, que corrompem a formação dos católicos fiéis à Tradição, para que não recaia sobre nós a acusação que Nosso Senhor lançou contra os fariseus do Seu tempo: “Por que não compreendeis a minha linguagem? É porque não podeis ouvir a minha palavra.” (Jo. VIII, 43) Que Nosso Senhor nos dê a graça de compreender a Sua palavra e de rejeitar o fermento dos novos fariseus.