Bethlehem in Brasilia, 19 aprilis A.D. 2019
Por Pe. Ivan Chudzik, IBP. – Igreja do Rosário.
A Catedral de Paris e a nossa alma
A Semana Santa se inicia liturgicamente com o domingo de Ramos—a entrada triunfal de Nosso Senhor em Jerusalém, não para ser coroado como um Rei político, mas para ser oferecido como Vítima na Cruz—, mas neste ano de 2019 a Semana Santa se iniciou simbolicamente—e isto é incontestável—com o incêndio da Catedral de Paris, na segunda-feira. O mundo se comoveu com a destruição considerável deste patrimônio, e nós, católicos, tememos a consumação da Santíssima Eucaristia e a perda das suas relíquias insignes, como a Coroa de espinhos. Felizmente, o que havia de santo foi salvo. No entanto, quando Deus Nosso Senhor permite que uma das mais belas jóias da arquitetura cristã, que contém dentre os mais preciosos tesouros da nossa Fé, seja praticamente destruída temos que nos convencer de uma vez por todas de que não somente a nossa vida passará, mas este mundo também. A vida passa, o mundo passa, e nesta segunda-feira os 850 anos da Catedral de Paris foram praticamente incinerados durante algumas poucas horas; e graças à lente das câmeras, nós também pudemos assistir, deste lado do Atlântico, a este dramático momento da História.
Ainda que a dita Catedral não tenha sido consumida por este incêndio, eu não inventaria nada se lhes dissesse que, cedo ou tarde, ela passará. Bem sabemos disso, porque no Evangelho lemos que “O céu e a terra passarão […]” (Mt. XXIV, 35), assim como no Apocalipse encontramos esta visão de São João: “Vi, então, um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra desapareceram e o mar já não existia.” (Ap. XXI, 1)
Apesar do fogo, a Catedral de Paris ainda não passou, mas seu incêndio já foi trágico o suficiente para comover o mundo. O que sentiremos, então, se viermos a testemunhar o seu desmoronamento ou o seu incêndio por completo? Que sentimento de perda para a religião e a cultura, que sensação de luto pela ausência de um edifício símbolo da História do Ocidente, que saudades, talvez, de um monumento visitado, que recebeu a admiração e abrigou as preces de uma multidão incontável?
A comoção do mundo é legítima e a tristeza dos católicos é sensata. Porém, não estamos fazendo com a Catedral de Paris o que as Santas mulheres fizeram no caminho do Calvário considerando a desgraça alheia sem considerar a própria? De fato, as mulheres que encontraram Nosso Senhor carregando a Cruz batiam no peito e O lamentavam (cf. Lc. XXIII, 27); no entanto, o Salvador não aceitou a pena que elas sentiram dEle, pois lhes disse: “Filhas de Jerusalém, não choreis sobre mim, mas chorai sobre vós mesmas e sobre vossos filhos.” (Lc. XXIII, 28)
Ainda que as Santas mulheres tenham encontrado Nosso Senhor flagelado, coroado de espinhos, esgotado de cansaço, sentenciado de morte, carregando um pesado madeiro até o alto de um monte, o Cristo não teria sofrido a menor violência contra a Sua humanidade santíssima se Ele não tivesse permitido, como ouvimos no profeta Isaías (LIII, 7): “Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca como um cordeiro que se conduz ao matadouro, e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador. Ele não abriu a boca.” O Cristo foi vítima, mas Vítima voluntária. O que devemos lamentar não é a Sua Paixão enquanto tal, isto é, as dores que sofreu, mas por quê sofreu. Quando consideramos que é Deus encarnado que sofre para salvar a criatura pecadora, lamentamos o pecado e nos ardemos de caridade para com este Deus sofredor. São assim as dores de Maria Santíssima, dores de compaixão, ou seja, de união à Paixão de Nosso Senhor. Ela sofre por participação, unida ao Filho, ao invés de lamentar o Filho. Se há algo que Maria Santíssima lamenta são nossos pecados, causa dos sofrimentos do Salvador. A Paixão, porém, não é objeto do seu lamento; a Paixão é para Maria Santíssima uma espada de amor, porque quem não amará de volta a Deus ao vê-Lo se obrigar a tanto para nos resgatar e nos devolver a Sua graça? E quem ama, sofre pelo amado, está disposto a perder tudo, inclusive a própria vida, mas não o amado. E não podendo a Santíssima Virgem morrer com o seu Filho, ela oferece a sua alma em martírio ao contemplar dolorosamente cada delicadeza do amor de Nosso Senhor para conosco, que Ele manifesta na Sua crudelíssima Paixão. Se a Santíssima Virgem pudesse morrer durante a Paixão, morreria de amor.
Dito isso a respeito da Paixão do Salvador, voltemos à Catedral de Paris. Já dissemos que não havia mal na comoção do mundo e na tristeza dos católicos. Mas enquanto os homens se condoem com as labaredas que sobem do teto da Catedral, enquanto lamentamos este belo monumento em chamas, não estamos nos esquecendo, como as mulheres de Jerusalém, de lamentar o que verdadeiramente deve ser lamentado? Não haveria um outro edifício, ou melhor, um outro templo a ser objeto da nossa lástima, e cuja perda traria consequências gravíssimas para cada um?
De fato, de nada adianta lamentarmos a Catedral de Paris e não lamentarmos as desgraças que recaem sobre a nossa alma, templo do Espírito Santo (I Cor. VI, 19). A Catedral de Paris era bela, espelho da beleza que Deus imprimiu na natureza; a nossa alma, por sua vez, possui uma beleza superior, que são as virtudes infusas e os dons com os quais Deus a adorna desde o nosso Batismo. A Catedral de Paris conservava relíquias preciosas como a Coroa de espinhos; mas somente pela nossa alma é que Nosso Senhor aceitou ser coroado com espinhos e não com os metais precisos, como Ele merece. A Catedral de Paris conservava o Santíssimo Sacramento—aliás, como a maioria das igrejas—; a nossa alma, por sua vez, não conserva, mas vive da Presença Real, pois Nosso Senhor vem viver, agir e reinar em nós pela Comunhão. A Catedral de Paris suportou as vicissitudes da História durante 850 anos; a nossa alma, por sua vez, permanecerá para a eternidade.
Mas se a Catedral de Paris foi vítima de um incêndio que a danificou consideravelmente, dano maior sofre a nossa alma pelo pecado, não apenas os graves, mas já os veniais. Quando o incêndio se principiou, a flecha da Catedral—seu ponto mais alto—foi danificada; enquanto que pelos pecados veniais nós impedimos a nossa alma de se manter em alturas mais elevadas, criando obstáculos à ação da graça. Quando o incêndio se alastrou, o telhado e o teto foram danificados, que começaram a ruir; enquanto que pelos pecados veniais nós fazemos ruir tudo o que conquistamos fugindo das ocasiões de pecado, praticando a mortificação e as virtudes, pois assim como o teto protege um edifício das precipitações, assim também o combate espiritual nos mantém a salvo das investidas do demônio, que se precipita sobre nós. Quando o incêndio já estava suficientemente avançado, o teto ruiu e choveu pedregulho e madeira sobre a nave e a parte mais avançada do presbitério; enquanto que pelos pecados veniais habituais e voluntários nós atrasamos a nossa alma em praticar mesmo o bem natural—como o estudo e o cumprimento dos deveres—, porque somos invadidos pela preguiça e pelo apego a certas consolações sensíveis que nos paralisam tanto quanto aquelas pedras tornaram a nave da Catedral intransitável. Mas pouco após o incêndio ter começado, o temor obrigou a se retirar o Santíssimo Sacramento e as relíquias da Catedral em chamas, e assim ocorre em nossa alma quando nos expomos aos pecados veniais, julgando serem pouca coisa: o pecado venial nos predispõe ao pecado mortal. Quem aceita pôr fogo na própria alma, atiçando as paixões, frequentando ocasiões de pecado ou dialogando imprudentemente com as tentações que o demônio lhe lança, expõe-se ao risco de perder a presença de Deus e deixa de receber a intercessão dos Santos a seu favor.
De fato, enquanto lamentamos o incêndio da Catedral de Paris nos esquecemos de lamentar a nossa alma, na qual se ateia fogo a cada pecado venial e da qual se expulsa Deus a cada pecado mortal. Mas se a Providência permitiu que neste momento da História a Catedral de Paris sofresse um incêndio na Segunda-feira Santa, não seria um aviso para nós, que frequentemente incendiamos a nossa alma sem nenhuma dor ou lamento? A Catedral que arde diante dos nossos olhos é, na verdade, uma imagem das almas de nosso século, entregue ao pecado, vivendo como se não houvesse Deus. Se Nosso Senhor, durante a Sua Paixão, consentiu que destruíssem o templo do Seu corpo porque iria ressuscitar no terceiro dia, peçamo-Lhe hoje para que Ele venha reconstruir a nossa alma, desfigurada por tantos pecados, a fim de ser novamente um templo vivo, limpo e ornado para o Espírito Santo.