Sermo in Cœna Domini

Bethlehem in Brasilia, 18 aprilis A.D. 2019

Por Pe. Ivan Chudzik, IBP. – Igreja do Rosário.

Deus Se dá na Eucaristia para nos darmos a Ele na Comunhão

       Ouvimos na epístola a narrativa da instituição da Eucaristia: “[…] o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão […] e disse: ‘Isto é o meu corpo, que é entregue por vós […]’.” (I Cor. XI, 23-24) Para meditarmos a respeito deste mistério, consideremos que Nosso Senhor é a luz do mundo e que quem O segue não anda nas trevas (cf. Jo. VIII, 12); mas se alguém preferir as trevas do pecado e não seguir a luz que é a vida da graça, este alguém não apenas ofende a Deus, mas trai a Deus.

       Na verdade, podemos ofender até uma pessoa que não conhecemos simplesmente por tratá-la mal: e quantas vezes nos ocorre de sermos grosseiros gratuitamente; porém de nenhum modo traímos esta pessoa, porque se trata tão-somente de um estranho. Um estranho pode ser ofendido, mas nunca traído. Com Nosso Senhor não pode ocorrer o mesmo, porque Deus não é, em hipótese alguma, um “estranho”, ainda que os homens decidam ignorá-Lo e desprezá-Lo, uma vez que Ele nos eleva à vida sobrenatural pela graça. Ou seja, se a graça nos faz partícipes da Vida divina, e a amizade é uma certa união ou sociedade entre semelhantes, então a graça nos torna amigos de Deus. De fato, a vida da graça é uma amizade com Deus, porque o que Ele nos dá não é algo de Si, mas a Si mesmo. A partir disto é fácil concluir que a Deus não apenas se ofende, mas se trai, ou melhor, toda a ofensa inclui uma traição. Pelo pecado, traímos o dom da amizade de Deus que é a graça.

       Agora retornemos ao relato de São Paulo e ouçamo-lo dizer que “na noite em que foi traído” Nosso Senhor, Luz do mundo, Se deu aos homens instituindo o Sacramento no qual Ele permaneceria conosco até a consumação dos séculos e pelo qual Ele consumaria a Sua união e amizade conosco iniciada pela graça batismal. Naquela noite, quando Judas foi ao Seu encontro no Jardim das oliveiras e Lhe deu o ósculo traidor, Nosso Senhor lhe perguntou com doçura inalterável: “Amigo, é para isso que vens aqui?” (Mt. XXVI, 50)

       O traidor foi chamado de “amigo”. Não é preciso muito esforço para percebermos que, no lugar de Nosso Senhor, nenhum de nós teria recebido Judas procurando se esquecer da traição e esperando reatar a amizade. Mas hoje, na noite da instituição do Sacerdócio e da Eucaristia, devemos nos interrogar se porventura o Salvador não nos diz aquilo que disse a Judas na noite em que foi traído: “Amigo, é para isso que vens aqui?” Não seremos nós os traidores que vieram trair Nosso Senhor, com a mesma frieza capaz de dar um ósculo na face do Cristo antes de executar a traição?

       Examinemos, portanto, nossa consciência nesta noite e reconheçamos com humildade e contrição que somos traidores, cada um a seu modo. Se a amizade que Nosso Senhor quer estabelecer conosco consiste no dom da Sua vida divina, cada uma das graças que negligenciamos ou desperdiçamos, desde uma suave inspiração do nosso Anjo da Guarda até uma grande graça recebida, por exemplo, durante um retiro, enfim, a cada vez que não aceitamos a graça e preferimos nossa vontade própria desordenada, podemos tanto ofender a Deus pela recusa da Sua amizade—e nisto consiste o pecado mortal—quanto querer servi-Lo esquivando-nos da Sua amizade—e nisto consiste o pecado venial.

       De fato, o pecado venial não exclui a graça, não a expulsa de nossa alma, mas a impede de agir e de se desenvolver em nós. A amizade produzida pela graça subsiste, porém paralisada por pecados que nos distanciam passo a passo do nosso divino Amigo. E como é próprio do pecado venial predispor aos pecados mortais, de uma amizade fria e distante passa-se sem dificuldades à própria inimizade.

       Assim ocorreu com os apóstolos “na noite em que o Senhor Jesus foi traído”. Judas foi ao encontro do Salvador para entregá-Lo nas mãos dos Seus inimigos, acompanhado de uma multidão armada (cf. Mt. XXVI, 47), ao passo que os apóstolos simplesmente dormiam, porque não puderam vigiar uma hora com o Cristo (cf. Mt. XXVI, 40). E não tendo rezado quando deveria, Pedro reagiu passionalmente ao decepar a orelha do servo do sumo sacerdote (cf. Mt. XXVI, 51). Até então, não tinha a intenção de fugir nem de trair, mas por falta da luz da graça, deixou-se dominar pela ira. E da ira caiu no desespero, quando ele e os demais apóstolos fugiram (cf. Mt. XXVI, 56), vencidos por um combate em que não procuraram suficientemente a graça para resistirem com fortaleza. Da preguiça à ira, da ira ao desespero. E apesar da fuga, não nos esqueçamos que poucas horas antes os apóstolos estavam com Nosso Senhor no Cenáculo, para a instituição do Sacerdócio e da Eucaristia. Se receberam a Eucaristia, receberam o Sacramento do Amor, no qual o próprio Deus Se dá a nós por inteiro, a fim de consumar a Sua amizade conosco; mas se traíram em pouco tempo, ainda que a Comunhão dos apóstolos não tenha sido sacrílega como seria para Judas, podemos presumir que também não foi frutífera ou pelo menos que os frutos não duraram o bastante.

       É preciso considerar que ao dom da amizade de Deus que é a graça, que o Sacramento da Eucaristia vem corroborar, aperfeiçoar e consumar, uma vez que a Eucaristia não é a comunicação de uma graça, mas a presença do próprio Autor da graça, enfim, corresponde a este dom necessariamente um outro dom, isto é, o dom do próprio indivíduo comungante. Deus Se dá na Eucaristia para que o homem também faça o dom da própria vida, como se lê no Imitação de Cristo: “Que outra coisa exijo de ti senão que te entregues inteiramente a mim? De tudo que me deres fora de ti, não faço caso; porque não busco teus dons, mas a ti mesmo.” (l. IV, cap. VIII, 1)

       Dito isso, eis aqui a causa para tantas Comunhões tíbias que eventualmente tivemos durante a vida: comungamos com a intenção de receber uma graça, mas não para se estreitar e se consumar a amizade com o Autor da graça; comungamos dando algo de nós, mas não para nos darmos a nós mesmos Àquele que deu tudo de Si; comungamos pedindo a graça de evitarmos o pecado, mas não tencionamos nos afastar de várias ocasiões de pecar; comungamos pedindo a graça de praticarmos a virtude, mas tememos fazer violência às nossas paixões; comungamos esperando obter a santidade, mas, como os apóstolos que dormem no Horto, não temos uma vida de oração sólida para alcançá-la de fato. Assim, Deus entra por nossos lábios, mas continua fora de nossa vida; as espécies eucarísticas se consomem nas paredes de nosso estômago, mas nós não somos consumidos pela Eucaristia, ainda que o nosso Deus seja um fogo devorador, como diz a Escritura (cf. Hb. XII, 28). Deste modo, a cada Comunhão obrigamos Nosso Senhor a nos dizer aquilo que disse a Judas: “Amigo, é para isso que vens aqui?” Viemos receber o dom da amizade de Deus sem o firme propósito de corresponder à altura, pois nos satisfazemos em ganhar algumas graças ou consolações e não nos importamos muito com a Sua Pessoa.

       Nesta noite devemos aprender definitivamente com Nosso Senhor que Ele não nos trata mais por servos, mas amigos (cf. Jo. XV, 15); e se Ele quer fazer de nós Seus amigos, pelo Sacramento da Eucaristia, não podemos mais viver como mercenários, que pretendem servir a Deus com certas obras, mas não com a oblação da própria vida. Do contrário, a falta de um verdadeiro combate espiritual não impedirá por muito tempo que dos pecados veniais se caia nos mortais. Em consequência disso, também não podemos nos aproximar do Sacramento da Confissão apenas para recitar uma lista de ofensas que cometemos contra um estranho ou para pagar uma dívida para com um credor exigente. Nosso Senhor não é um estranho que se ofende ou um credor para quem se deve, mas um amigo que se trai. E o nosso divino Amigo Se agrada de nossa Confissão não tanto pela precisão e quantidade de detalhes na acusação—ainda que os pecados devam ser confessados em espécie, número e circunstância—mas principalmente pela dor com que confessamos os nossos pecados. Esta dor não apenas tornará nossa Confissão válida, mas frutífera, capaz de iniciar um recomeço sem quedas futuras.

       Mas para nos doermos dos nossos pecados, precisamos considerar primeiramente a Quem traímos. Se viemos receber um pedaço de pão oferecido pelo sacerdote, não teremos dor de nossos pecados; se viemos receber um símbolo ou um objeto sagrado, não teremos dor de nossos pecados; se viemos receber uma graça da Igreja, ainda assim não teremos dor de nossos pecados. Verdadeira dor só teremos quando finalmente compreendermos, sob a luz da graça, que se tratava este tempo todo de um Amigo dando-Se a Si mesmo, a Quem eu não tinha a intenção de amar, mas somente de servir, por medo do inferno, por peso de consciência, por prudência, por respeito humano, por hábito ou circunstância meramente cultural, como se o único fato que justificasse a Fé que alguém professa fosse a família onde nasceu ou o cônjuge que contraiu em Matrimônio.

       “Amigo, é para isso que vens aqui?”, pergunta-nos Nosso Senhor. Viemos aqui separar o estado de graça da busca da santidade? Viemos aqui servir a Deus mas não querer se fazer seu Amigo? Viemos falar-lhe muitas coisas, sem deixar um instante que Ele, a Palavra de Deus, fale-nos um pouco? Viemos pedir-lhe muitas coisas sem permitir que Ele, Criador de todas as coisas, ouse pedir nosso coração?

       Se queremos que esta Comunhão seja talvez a nossa primeira bem feita—porque iremos finalmente receber Alguém e não algo, uma Pessoa e não uma coisa, um Amigo e não uma graça anônima—, deixemos que Ele tome para Si algo de nós a cada Comunhão recebida. O fogo devorador que é Jesus eucarístico não pode nos incendiar se Lhe recusamos o menor sacrifício e o menor esforço. Em colóquio amoroso, deixemos que nos leve algo, sacrifiquemo-Lo algo, de modo que, aos poucos, perderemos o apego a nós mesmos, permitindo a Nosso Senhor nos configurar aos Seus movimentos, aos Seus pensamentos, aos Seus afetos, à Sua alma, ao Seu Coração, em suma, à Sua Pessoa. Saiamos sempre da igreja tendo conversado com Nosso Senhor, e não ingerido pura e simplesmente as espécies eucarísticas; saiamos sempre da igreja tendo oferecido algo de nós para ser consumido e transformado por Nosso Senhor, com a resolução de não mais tomarmos de volta o que Lhe oferecemos definitivamente. Assim viveremos a vida espiritual como uma verdadeira e intensa amizade com o Cristo eucarístico; e diante desta doce amizade nossos vícios passados não nos parecerão mais que tristeza e amargura.

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