Por Pe. Ivan Chudzik, IBP.
Bethlehem in Brasilia, 7 aprilis A.D. 2019
Procuremos a face do Senhor, que Ele esconde de nossos pecados
Se quisermos compreender o mistério próprio deste domingo, façamos primeiramente uma recapitulação dos domingos precedentes. Há sete semanas se iniciava o Tempo da Septuagésima, pois estávamos a setenta dias da Páscoa. Durante a Septuagésima, a Liturgia já se revestia dos paramentos roxos e omitia o Glória da Missa e o Aleluia de todos os ofícios, o que perdurará até o Sábado Santo. Ainda não estávamos num Tempo de penitência, mas já era tempo de se adquirir o espírito de penitência, visto que a Septuagésima procura imprimir em nossas almas a consciência do pecado e a necessidade da conversão. A Septuagésima, portanto, é a preparação remota à Páscoa. Em seguida, há quatro semanas, se iniciava o Tempo da Quaresma, quando a Liturgia assumiu um aspecto deveras austero, pela supressão do órgão e dos instrumentos, pelo desaparecimento das flores e das relíquias do altar e pela multiplicação de ritos penitenciais durante os ofícios, como por exemplo, a “oração sobre o povo”, após a oração pós-Comunhão nas Missas feriais, durante a qual os fiéis se mantém ajoelhados e inclinados. A Quaresma, portanto, é um Tempo de penitência e a preparação próxima da Páscoa.
Hoje, porém, já não estamos propriamente na Quaresma, pois entramos na preparação imediata da Páscoa, que é o Tempo da Paixão. É preciso compreender que quanto mais próximos estamos do Mistério da Morte de Nosso Senhor, mais a austeridade da Liturgia se transforma em verdadeiro luto. Na verdade, a Quaresma nos obrigou à penitência porque pôs diante dos nossos olhos os nossos pecados; o Tempo da Paixão, por sua vez, obriga-nos a uma penitência ainda maior, porque põe diante dos nossos olhos a conspiração dos fariseus para conduzir à Morte o divino Cordeiro. Em face deste mistério de iniquidade, todos os deleites deste mundo se convertem em amargura, todas as alegrias se reduzem em tristeza, porque nos vêm ao espírito aquele pensamento de São Francisco de Assis: “o Amor não é amado”.
De fato, ainda ontem no Evangelho da Missa, ouvimos Nosso Senhor dizer aos fariseus: “Eu sou a luz do mundo; aquele que me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida.” (Jo. VIII, 12) Eles, porém, não podendo suportar a pregação da verdade e os milagres operados pelo Cristo, especialmente a ressurreição de Lázaro—cujo Evangelho foi lido na última sexta-feira—, pegam em pedras para apedrejá-Lo, e ouvimos há pouco que, por causa disto, Nosso Senhor teve que Se ocultar e sair do Templo (cf. Jo VIII, 59). Os fariseus odiaram a Luz de Cristo, e o Cristo Se eclipsou, ocultando-Se dos Seus perseguidores. Dora diante, ouviremos o Último Evangelho da Missa com mais compunção, porque não esqueceremos de quê ódio o evangelista faz referência ao dizer: “[O Verbo] era a verdadeira luz que, vindo ao mundo, ilumina todo homem. […] Veio para o que era seu, mas os seus não o receberam.” (Jo. I, 9; 11)
E já que os judeus não receberam Nosso Senhor mas, antes, quiseram condená-Lo à morte, obrigando a Luz do mundo a Se eclipsar, que hoje encontramos a cruz do altar velada por um pano roxo. A cruz do altar coberta representa o Cristo que foge dos Seus perseguidores e o luto da Igreja face à humilhação do Seu divino Esposo. Além do cruz, observamos que também as imagens dos Santos foram cobertas, pois se a própria luz de Cristo é eclipsada, não convém aos Santos que a sua glória fique descoberta.
Na Liturgia propriamente, o luto da Igreja se verifica pela supressão do Salmo 42 das orações ao pé do altar, o que só ocorre nas Missas de defunto, uma vez que este Salmo manifesta a alegria da Igreja ao celebrar o Sacrifício eucarístico. A doxologia, isto é, o Glória-ao-Pai desaparece do Intróito e do Salmo do Lavabo, assim como dos responsórios do Ofício Divino. Eis o profundo luto da Igreja diante da conspiração dos fariseus, que em breve levará Nosso Senhor à Morte de Cruz.
Não obstante, o luto da Igreja é mesclado por uma misteriosa alegria, pois a Cruz, o instrumento da Morte do Salvador, paradoxalmente é o sinal da Sua vitória e do Seu triunfo sobre o demônio, o mundo e o pecado, razão pela qual durante o Tempo da Paixão é louvada pelos hinos do Breviário e pelo Prefácio da Missa. E isto é uma resposta muito adequada a tantas acusações que o Rito Romano tradicional recebe de inúmeros teólogos modernos, pois, segundo estes, a Liturgia de antigamente não tinha olhos senão para a Paixão de Nosso Senhor, não via senão o Sacrifício, esquecendo-se completamente da Ressurreição. Estes teólogos pensam terem descoberto a alegria da Ressurreição, enquanto somos nós que cantamos o triunfo da Cruz sem esquecer o quanto este triunfo custou caro ao nosso Salvador: custou nada menos do que a Sua sanguinolenta, cruenta e dolorosíssima Paixão. O Tempo da Paixão quer nos apresentar de onde o Cristo triunfa: triunfa de uma Morte vergonhosa, pois não havia pena capital pior no tempo de Nosso Senhor do que ser condenado ao suplício da cruz. Tão vergonhosa era a crucificação que os primeiros cristãos não tiveram coragem de representar o Cristo crucificado: ou cravejavam a cruz do altar de pedras preciosas ou representavam o Salvador com trajes de Rei, pois como diz o Hino das Vésperas, “do madeiro da Cruz Deus reinou”. A Cruz, portanto, é o trono de Deus, de onde Ele nos adquire com o Seu preciosíssimo Sangue, libertando-nos do cativeiro do demônio e e adotando-nos como filhos e herdeiros do Seu Reino.
Dito isso, devemos nos lembrar que, apesar de a Quaresma ter sido um tempo de penitência e mortificação, a finalidade dos esforços quaresmais não era outra senão reaver a verdadeira alegria, que é espiritual, pois o apego excessivo aos bens deste mundo tira de nossa alma a consideração dos bens espirituais. Por esta razão, no II domingo da Quaresma ouvimos o Evangelho da Transfiguração, e no IV o da multiplicação dos pães. No primeiro caso, a Igreja nos consola com a recordação do prêmio final da penitência que é a glória do Céu; no segundo, a Igreja nos alenta com o prêmio já deste mundo, uma vez que a mortificação também serve para se recuperar o justo equilíbrio no uso dos bens sensíveis.
No Tempo da Paixão, porém, não há outra alegria a ser considerada senão a do triunfo vindouro, isto é, o triunfo da Cruz. E enquanto aguardamos esperançosos o domingo de Páscoa, a cruz do altar e as imagens veladas nos recordam não apenas o luto da Igreja durante a Paixão, mas também a nossa merecida desolação. Afinal, como disse Santo Agostinho, o pecado consiste numa “aversão a Deus” e numa “conversão à criatura”. A cada vez que pecamos nos apegamos desordenadamente a uma criatura e mesmo se não tivermos a intenção estamos necessariamente nos escondendo de Deus, estamos desprezando o nosso Criador porque preferimos a criatura. Se na Quaresma procuramos fazer mortificação para curar esta “conversão à criatura”, este apego excessivo e desordenado, no Tempo da Paixão devemos nos condoer porque Deus também esconde a Sua face de nós, nós que tivemos aversão por Ele e desprezamos o Seu amor. Diz o Senhor no livro do Deuteronômio (XXXII, 20): “Vou ocultar-lhes o meu rosto […] Pois são uma geração perversa, filhos sem lealdade.” Com efeito, não há pior castigo para o pecador senão ser abandonado por Deus, que lhe permite continuar em seu estado miserável usufruindo de seus delírios. Nenhuma doença, nenhuma miséria material, nenhuma catástrofe natural é maior do que o pecador ter a liberdade para continuar pecando, pois se o filho pródigo não quer viver na casa de seu pai, então fará a experiência de viver entre os porcos sem perceber que vale menos do que eles. A cegueira espiritual é a pior consequência do pecado, porque se Deus continuasse a derramar graças abundantes aos pecadores obstinados, estes as desprezariam sem cessar, o que apenas aumentaria a sua culpa. Se Deus diminui as graças é por misericórdia; e se os mundanos aparentam serem inabaláveis na ostentação da sua falsa felicidade, isto não passa de um castigo. Donde um dos poucos meios para que a Providência obtenha a conversão dos grandes pecadores é uma tragédia material ou física, pois somente sofrendo que o pecador se dá conta de que sua vida não passava de uma ilusão. Quando vemos alguém sofrer, saibamos que o sofrimento sempre vem para o nosso bem e frequentemente para a nossa conversão.
Mas quando nos arrependemos e voltamos para Deus, é preciso nos condoermos por termos rejeitado durante tanto tempo a graça e dado as costas à face de Deus. No Tempo da Paixão, a cada vez que a Liturgia nos apresentar o Cristo sendo perseguido pelos fariseus, devemos nos colocar no lugar destes fariseus, como fez São Paulo ao dizer: “[…] eu sou o menor dos apóstolos, e não sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus.” (I Cor. XV, 9) De fato, entre nós e os mundanos, ou entre nós e maus católicos e mais ainda, entre nós e aqueles que pretendem destruir a Igreja por dentro, isto é, os progressistas, a exemplo de São Paulo devemos dizer: somos nós os menores, porque conhecemos a Deus mais do que os outros e um dia não O amamos; porque conhecemos a Deus melhor do que os outros e ainda não O amamos tanto quanto este conhecimento nos impele. Na verdade, é de se esperar que a Igreja esteja infestada de inimigos de todo o tipo, se mesmo os seus amigos se encontram infiéis e tíbios.
Procuremos nos apresentar nesta Páscoa fiéis à vida de oração, especialmente à meditação, fiéis à prática das virtudes, fiéis à mortificação e às nossas boas resoluções, pois se o Cristo não ressuscitar em nós, a Igreja não triunfará tão cedo de seus inimigos.