Da Missa papal à Missa rezada: o desenvolvimento da tradição romana da Liturgia

Vimos no artigo do mês passado que, apesar de serem tantos as famílias litúrgicas—Rito Romano, Bizantino, Maronita, etc.—, o Santo Sacrifício eucarístico é sempre idêntico em todos eles. Não obstante, dentro de um mesmo Rito a Santa Missa pode ser celebrada com maior ou menor aparato, e no caso do Rito Romano isto se nota pelo número de ministros sagrados, o canto litúrgico, o uso do incenso, a qualidade e a cor dos paramentos, a quantidade de velas acesas e os demais adornos do altar. Como distinguir nesses elementos as diferentes modalidades de celebração da Santa Missa de uma mera disposição particular, isto é, dos costumes próprios de uma igreja ou de um sacerdote? Para tanto, é preciso considerar antes de tudo o desenvolvimento da celebração do Santo Sacrifício na tradição romana, se quisermos distinguir mais claramente as diversas modalidades que surgiram ao longo da História.

            Com efeito, contrariamente ao que muitos podem imaginar, o Rito Romano não começou com a “Missa rezada” (a Missa lecta, que os ingleses chamam de lown Mass) para depois se desenvolver até atingir a solenidade e complexidade da Missa solene ou pontifical. Na verdade, a forma primitiva de celebração é uma Missa episcopal com participação do Clero e dos fiéis, isto é, a solene Liturgia de uma igreja particular unida ao seu Bispo. Desde o fim do século I até o século IV quase todos os documentos dão prova deste estado de coisas, normal para uma religião que até então era principalmente urbana. Nesta modalidade de celebração, cada clérigo participa segundo o seu grau nas ordens sacras, o que não implica que os sacerdotes concelebrassem com o seu Bispo: trata-se de uma concelebração “cerimonial” e não “sacramental”, as palavras da Consagração permanecendo reservadas ao Pontífice.

            Ora, o Ordo Romanus—cerimonial que ditava a prática da Liturgia papal—previa que os Bispos deveriam fazer nas suas igrejas particulares como o Papa em Roma; mais: o Bispo que substituísse o Papa na Liturgia estacional[1] não precisava operar mais do que algumas modificações acidentais, e o mesmo valia se um simples sacerdote celebrasse. A Cappella Papale foi assim o modelo da Liturgia das igrejas locais assim como de todas as formas de celebração. Consequentemente, o desenvolvimento da celebração da Santa Missa não foi um movimento de solenização, mas de simplificação: a Liturgia romana sendo por definição papal—a Liturgia do Bispo de Roma, o Papa—, o Rito Romano não poderia nascer e se desenvolver a não ser em dependência e como que por derivação do que era praticado na Sé de Pedro[2].

            Assim, durante muitos séculos a Missa do simples sacerdote teve uma aparência deveras pontifical, principalmente quando ele exercia uma jurisdição semelhante à do Bispo—como o Abade no mosteiro. A Missa solene tal qual conhecemos só começou a tomar forma a partir dos séculos XI e XII, sendo que no século XIII já estava suficientemente distinta do rito pontifical.

            Todavia, o desenvolvimento do Rito Romano através de sucessivas simplificações do seu modelo—a Missa papal—não impede que, desde os primeiros séculos, os sacerdotes tinham que celebrar Missa e não apenas concelebrar (concelebração cerimonial) na Liturgia da igreja catedral. Se os documentos quase não tratam do rito sacerdotal e individual do Sacrifício eucarístico é por causa da sua maior simplicidade—não exigindo registros escritos—e menor frequência: a disciplina da celebração quotidiana da Santa Missa é tardia na História da Igreja. Não obstante, se não se trata de um rito episcopal nem solene, ainda assim estamos diante de uma Liturgia cantada—cuja estrutura se mantém fiel o quanto possível ao modelo pontifical—a única praticável em aldeias e terras de senhores feudais, e da qual descende diretamente a Missa cantada que conhecemos.

            Vimos até então que a Liturgia sempre tendeu às formas solenes (ritos e canto coral) e sociais (participação do Clero e do povo), e diante da impossibilidade de se fazer como na Catedral assumiu formas mais simples. Não obstante, antes mesmo de o Cristianismo ganhar liberdade para edificar igrejas e celebrar solenemente a Liturgia—quando os ritos começaram a se desenvolver—, os primeiros cristãos conheceram a Santa Missa em residências particulares (cf. At. II, 46). Se tais celebrações privadas perseveraram durante toda a Idade Média—em oratórios privados—, apesar do fim das perseguições, é porque o Sacrifício eucarístico não exige, por si mesmo, um rito solene e social, ainda que este seja a sua forma mais perfeita. Na verdade, a Liturgia é o culto público e oficial da Igreja: onde quer que seja celebrada, em presença de toda a igreja local, de alguns, de poucos ou de ninguém, a sua natureza permanece a mesma. Donde os Bispos e sacerdotes terem pouco a pouco procurado celebrar também privadamente a Missa, sem assembléia, movidos por uma ou outra finalidade do Sacrifício eucarístico—ação de graças, sufrágio de uma alma, etc. O testemunho mais antigo atestando esta forma de celebração remonta ao século VI; dois séculos depois, a Missa privada quoditiana ou quase quoditiana se difundira largamente na vida monástica a ponto de se tornar regra, no século seguinte, para alguns mosteiros. A multiplicação dos altares nas igrejas abaciais—e mais tarde, nas igrejas catedrais e paroquiais—, bem como o surgimento de inúmeros formulários de Missa votiva, são uma prova deste movimento.  Desta Missa privada, lida, que admite certas simplificações, descende diretamente a Missa rezada que conhecemos. Não obstante, o desejo dos fiéis de participar frequentemente da Missa e a desvalorização das altas formas de Liturgia desde o começo dos tempos modernos—unida à crise vocacional da nossa época, que fez desaparecer a Liturgia solene e cantada de quase todas as catedrais, colegiadas, mosteiros e seminários—, fez com que a Missa privada, outrora celebrada em um altar lateral e somente participação do acólito, se tornasse paradoxalmente Missa pública, ou melhor, paroquial, celebrada no altar-mor e com participação dos fiéis.

            A partir desta visão geral do desenvolvimento histórico do Rito Romano, tornam-se mais compreensíveis as diferenças entre as formas de celebração que conhecemos hoje, das quais damos os elementos fundamentais à guisa de conclusão:

            Missa Pontifical no trono – Celebrante: o Ordinário local ou um Cardeal. Ministros sacros: Presbítero assistente, Diácono, Subdiácono, Subdiácono cruciferário e dois Diáconos assistentes no trono. Ministros inferiores: cerimoniários, turiferário, acólitos, porta-insígnias e eventualmente ceriferários; canto obrigatório do Ordinário e do Próprio. Paramentos: todos os paramentos pontificais, incluindo o báculo. Altar: Acende-se sete castiçais quando o Ordinário pontifica na Catedral; o Santíssimo Sacramento não deve estar guardado no altar-mor durante o Pontifical, mas numa capela ou altar lateral.

            Missa Pontifical no faldistório – Celebrante: o Ordinário fora da Catedral, o Bispo auxiliar, emérito ou visitante. Ministros sacros: Presbítero assistente, Diácono e Subdiácono. Ministros inferiores: cerimoniários, turiferário, acólitos, porta-insígnias e eventualmente ceriferários; canto obrigatório do Ordinário e do Próprio. Paramentos: todos os paramentos pontificais; em alguns casos admitindo o báculo. Altar: Acende-se seis castiçais; mesma observação quanto ao Santíssimo Sacramento.

            Missa solene – Celebrante: o sacerdote. Ministros sacros: Diácono e Subdiácono. Ministros inferiores: cerimoniário, turiferário, acólitos e eventualmente ceriferários; canto obrigatório do Ordinário e do Próprio. Paramentos: todos os sacerdotais. Altar: Acende-se seis castiçais.

            Missa cantada – Celebrante: o sacerdote. Ministros inferiores: admite cerimoniário, turiferário, acólitos e ceroferários, mas dois acólitos são suficientes para se cantar a Missa, sem necessidade de incenso; canto obrigatório do Ordinário e do Próprio. Paramentos: todos os sacerdotais. Altar: Acende-se de quatro a seis castiçais.

            Missa prelatícia – Celebrante: um Prelado, seja sacerdote com título (como o Abade) ou Bispo. Ministros sacros: dois “capelães”, isto é, sacerdotes assistentes. Ministros inferiores: admite acólitos e ceroferários, mas os capelães já bastam; não se canta o Ordinário e o Próprio. Paramentos: todos os sacerdotais, além da cruz peitoral e anel. Altar: Acende-se dois, quatro ou mesmo seis castiçais, dependendo das circunstâncias.

            Missa rezada – Celebrante: o sacerdote. Ministros inferiores: um ou dois acólitos; não se canta o Ordinário e o Próprio. Paramentos: todos os sacerdotais. Altar:

[1]    A Liturgia dos dias de penitência em Roma, que se principiava com a reunião dos fiéis em uma igreja (a igreja da Coleta, porque nela o Papa rezava a Coleta do dia), para em seguida se dirigir em procissão até a igreja onde ocorreria a Missa (a igreja da estação).

[2]    “É por isso que, ainda hoje, a diferença entre a missa pontifical e a missa solene do sacerdote é relativamente fraca na liturgia romana.” (JUNGMANN, Pe. Joseph-André. Missarum solemnia. t. I. Paris: Aubier, 1951, p. 249 (tradução nossa).

 

Pe. Ivan Chudzik, IBP.

Publicidade