Sermão da Festa de Nossa Senhora do Rosário

Pe. Ivan Chudzik – Capela do Hospital Beneficente Portuguesa

Sermo in festo Sacratissimi Rosarii
(XX Dominica post Pentecosten)
Bethlehem a Brasilia, 30 septembris A.D. 2018

O Rosário, arma de santidade

Antes de São Paulo elencar, na epístola aos Efésios (VI, 11-12), quais são as armas e os acessórios que compõem a armadura do cristão, ele diz: “Revesti-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às ciladas do demônio. Pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares.”
Enquanto tantos católicos engajados lutam pela união entre a Igreja e o Estado, ou, como se prefere dizer, entre o altar e o trono, poucos percebem que a primeira união que devemos restabelecer é a união entre a ordem sobrenatural e a ordem natural. É desta união que depende as demais: com efeito, se o homem foi elevado por Deus a um fim sobrenatural, que é a posse da glória eterna, então a natureza deve se vincular à graça, assim como a razão à Fé, a Filosofia à Teologia, a lei positiva à Moral, o Estado à Igreja, dentre outras uniões. Sob esta perspectiva, os problemas políticos perderão consideravelmente importância. Por um lado, é certo que a justiça e a paz sociais, assim como tantos outros bens terrenos, estão subordinados à obtenção dos bens sobrenaturais; por outro lado, isto não significa tão-somente que devemos defender o Reinado social de Nosso Senhor, para que a ordem social culmine no reconhecimento e na promoção da verdadeira e única Religião, mas também que a mesma Providência divina pode permitir os males sociais na medida em que contribuem para a nossa santificação. Basta um olhar rápido para o estado atual da sociedade a fim de constatarmos o quanto ela está submersa num dilúvio de males de toda espécie, a começar pelo pior deles, o pecado. Certamente, isto não escapa ao poder de Deus e tampouco frustra os planos da Sua Providência. Se as sociedades avançam na direção oposta ao Reinado social de Nosso Senhor, Deus sabe e permite, porque, como disse Santo Agostinho: “[…] o Deus todo-poderoso nunca teria permitido, na Sua bondade infinita, que o mal existisse em Sua obra se não fosse bom e poderoso o bastante para extrair o bem do próprio mal.” (Enchiridion, III)
Portanto, esta é a primeira conclusão que devemos ter em mente: por pior que seja a crise, em nenhum momento Nosso Senhor “perde”, por assim dizer, o governo da História; de modo algum o plano da Providência deixará de se realizar por insubmissão e revolta dos homens, porque Deus só permite o mal a fim de extrair dele um bem maior.
Dito isso, duas cenas do Evangelho ilustram como Deus Nosso Senhor Se serve do mal para a nossa santificação. Primeiramente, a fim de nos fazer crescer em graça. No episódio do cego de nascença, os apóstolos perguntam (Jo. IX, 2): “Mestre, quem pecou, este homem ou seus pais, para que nascesse cego?” Ao que o Salvador responde (v. 3): “Nem este pecou nem seus pais, mas é necessário que nele se manifestem as obras de Deus.” Neste caso, o mal da cegueira foi ocasião para que Nosso Senhor manifestasse a Sua divindade, e isto ocorre a cada vez que Deus permite as tentações, as tribulações e mesmo as heresias, porque aqueles que as combatem crescem em graça, pela prática das virtudes. Donde São Paulo dizer aos Coríntios (XI, 19): “É necessário que entre vós haja partidos (isto é, heresias) para que possam manifestar-se os que são realmente virtuosos.” Assim, a permissão ao erro e ao mal físico, no plano da Providência, está subordinada à própria santificação das almas.
Em segundo lugar, Deus Se serve do mal para castigar os nossos pecados. No episódio do enfermo que jazia junto à piscina probática, Nosso Senhor o cura e diz: “Eis que ficaste são; já não peques, para não te acontecer coisa pior.” (Jo. V, 14) O mal físico do castigo refreia a malícia do pecador e o impede de perseverar no seu pecado, evitando-lhe um mal maior, como a condenação eterna. Como está escrito no profeta Ezequiel (XVIII, 23): “Terei eu prazer com a morte do malvado? […] Não desejo eu, antes, que ele mude de proceder e viva?” Consequentemente, se Deus castiga não é por vingança, mas para o nosso bem.
Uma vez considerado que o próprio mal está a serviço da Providência, devemos voltar à questão política. Primeiramente, é uma ilusão julgarmos que a solução para os problemas do indivíduo e da sociedade depende da erradicação do Comunismo e da consolidação de um governo de política conservadora. Se a ordem natural está vinculada à ordem sobrenatural, antes de nos preocuparmos com a união entre o altar e o trono devemos fazer cessar a causa daqueles males que constituem verdadeiros castigos para a sociedade—e o Comunismo é um deles—, a saber: o pecado. Com efeito, se o pecado é uma ofensa ao Sumo Bem, nenhum mal pode ser pior do que o pecado, razão pela qual a Providência Se obriga a nos castigar severamente, por exemplo, permitindo a lastração do Comunismo, para não ter que condenar muitíssimas almas. Ainda que o Comunismo seja materialista e ateu, e portanto avesso à Fé católica, a sua difusão no leste europeu, desde o começo do século passado, obrigou os católicos a perseverarem fervorosamente na Religião, à custa de sacrifícios e de sangue. E uma vez que a ameaça comunista foi afastada, hoje, países como a Polônia ou a Croácia são muito mais católicos do que o nosso, onde nunca houve um regime propriamente comunista. Assim, o primeiro combate de todo católico deve ser o de cessar a causa dos castigos, isto é, os nossos pecados, especialmente os pecados cometidos em sociedade. Do contrário, ainda que se promova um governo genuinamente católico numa sociedade depravada e corrompida como a nossa, as boas leis não impedirão que os cidadãos continuem a pecar. As boas leis podem inibir os maus, diminuindo o seu campo de ação, mas não atingem e convertem os corações. Ora, a causa dos males sociais sendo o pecado, a verdadeira restauração da sociedade é mais profunda do que uma reforma política: consiste na conversão dos cidadãos.
Em segundo lugar, se o bem comum dos cidadãos não é um bem absoluto, porque está a serviço da santificação das almas, como já dissemos, isto quer dizer que Deus pode permitir muitos males sociais não apenas para castigar, mas também para suscitar santos, o que só podemos compreender se tivermos um espírito de Fé. Donde a questão da união entre a Igreja e o Estado ser secundária: há quem queira promover o Reinado social de Nosso Senhor como que buscando um “paraíso terrestre”, ou então por mera oposição aos modelos socialistas de governo, sem compreender que Deus pode muito bem permitir uma investida contra a Igreja e a sociedade católica para a Sua maior glória. Pensemos especialmente no caso das perseguições romanas dos três primeiros séculos, na Guerra dos cristeros, no México, ou na Guerra civil espanhola, que geraram incontáveis santos para a Igreja.
É por esta razão que a armadura do cristão, referida por São Paulo, não consiste no cidadão armado, no engajamento político e sobretudo partidário, no combate ao Comunismo, na promoção da alta cultura ou de qualquer outro bem de natureza intelectual, política, cultural, social ou econômica. Diz o apóstolo: “Pois não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra os principados e potestades, contra os príncipes deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal (espalhadas) nos ares.” Nosso primeiro e principal combate é o da santidade, razão pela qual o primeiro mal que devemos extirpar é o do pecado. Se não tivermos em mente a nossa santificação, não suportaremos certas provações que a Providência precisa enviar para nos fazer crescer em graça, ainda que julguemos trabalhar pela união entre o altar e o trono. Deste modo, agiremos como os apóstolos, preocupados com a restauração do reino de Israel, mas completamente alheios ao mistério do Calvário. Em sentido contrário, disse Santo Tomás: “O bem da graça de um só é superior ao bem de todo o universo.” (I-IIae, q. 113, a. 9, ad 2) Fundamentados nisto, é indiscutível para nós, católicos, que Deus Nosso Senhor Se interessa mais num só ato de caridade de uma alma do que com a política de todas as nações! E em função de um único ato de caridade Ele permite que muitos reinos se levantem e caiam, visando tão-somente os santos que quer formar! O que é, então, a História da humanidade, senão a História dos santos? E o que é a minha história de vida, senão uma recusa ou um atraso da santidade à qual Deus me chamou, se não fosse a minha preocupação desordenada em salvar a pátria, a história e quem sabe o universo, em detrimento da minha resposta à graça? Eis outra conclusão que devemos ter em mente: enquanto eu faço pouco caso da minha santificação, quiçá do estado de graça, para me preocupar com tantos fins secundários, Deus Nosso Senhor me vê e todo o universo unicamente sob a perspectiva da graça que quer dar às almas. Se tivéssemos Fé na santidade, certamente teríamos impedido muitos males que hoje tentamos afastar energicamente pela política; se tivéssemos confiado e nos abandonado completamente em Nosso Senhor, hoje não estaríamos como que “desesperados”, depositando toda a nossa confiança neste ou naquele político. Mais do que a união entre o trono e o altar, precisamos recuperar o espírito de Fé, pelo qual temos uma certeza invencível de que o sentido da História é a glória de Deus e a salvação das almas.
Imbuídos desta verdade sobrenatural, a partir de hoje recitaremos o terço do Rosário, cuja festa celebramos, não mais para evitar de passar o dia sem oração, ou para obter vantagens pessoais. Empunharemos as suas contas como uma arma, com a convicção inabalável de que fazemos mais por nós mesmos e pela humanidade rezando o terço do que todo o estudo, todo o trabalho, toda a política, toda a guerra e toda a ação meramente natural. E uma vez que tivermos buscado de toda a alma a nossa santificação, pela intercessão da Santíssima Virgem, Deus Nosso Senhor nos dará o resto por acréscimo.

Pe. José Zucchi – Igreja N.Sra Do Rosário

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