Introibo ad altare Dei [Parte II]: o desenvolvimento do altar no Rito Romano

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Introibo ad altare Dei: o desenvolvimento do altar no Rito Romano (segunda parte)

Após termos tratado da origem histórica do altar, afirmando-o como local do sacrifício e não de uma mera “ceia”, estabelecendo a sua ligação com o túmulo e as relíquias dos mártires e demonstrando a preferência multissecular da Igreja por matérias sólidas e nobres para a sua confecção, continuaremos nosso estudo abordando uma estrutura primitiva também cercada de controvérsias arqueológicas: o baldaquino.

Primitivamente chamado de ciborium magnum (grande copa ou taça, por causa da sua forma de receptáculo) e mais tarde de tegurium (talvez uma corruptela de ciborium; em todo caso conservando o sentido de “cobertura”), o baldaquino[1] é uma construção embasada sobre quatro colunas ligadas entre si por arcos ou arquitraves, encimadas e terminadas por uma pirâmide ou cúpula. Com efeito, a partir da paz de Constantino, no Edito de Milão, em 313, a Igreja pôde finalmente erigir seus templos em território do Império, sendo que o próprio Imperador doou nesta época o palácio lateranense ao Pontífice romano, tornando-se a primeira igreja de Roma e Catedral do Papa, a Arquibasílica de São João do Latrão. Assim, a Liturgia abandonaria as casas e as catacumbas para se encontrar doravante em edifícios vastos e altos, onde não haveria mais sentido o uso da mesa patrícia, do arco sólio e sequer de um altar de madeira. A estabilidade e as dimensões do templo obrigaram a Hierarquia não somente a preferir o altar de pedra — que desde muito cedo já possuía um rito de consagração — mas também erigir um monumento arquitetônico que evidenciasse este modesto bloco de pedra, centro da igreja cristã.

O primeiro destes monumentos foi uma doação de Constantino à própria basílica laterana, o fastigium. Em arquitetura, fastígio é a decoração conclusiva de uma construção, o ornamento que encimava o teto, o frontão ou então a sumidade do edifício. Como narra o Liber Pontificalis — a crônica dos Papas que reinaram até o século XV —, o Imperador legou à basílica quatro colunas revestidas de prata, encimada por estátuas de prata do Santíssimo Salvador, dos apóstolos e de anjos, com lampadários de ouro pendentes. Alguns autores julgam que o fastígio doado por Constantino foi o primeiro ciborium magnum de uma basílica romana; porém se trata de dois monumentos distintos. O fastígio constantiniano tinha forma de pérgula — isto é, as colunas em linha— e não era encimado por nenhuma cúpula, apesar de possuir o seu próprio frontão. Pela sua função claramente decorativa, o fastígio se encontrava em frente ao altar, separando o presbitério do resto da igreja. Pode-se imaginar a majestade de um tal monumento, dotado de aproximadamente 12 metros de altura, reluzindo ouro e prata.

A importância de distinguir o fastígio do cibório vai além de uma mera querela arqueológica ou arquitetônica. Primeiramente, não apenas o monumento doado por Constantino não era um ciborium magnum como posteriormente haverá igrejas em que os dois elementos arquitetônicos irão coexistir: o presbitério fechado e separado pelo fastígio e o altar coberto pelo cibório. Em segundo lugar, o cibório ou o fastígio não são uma novidade cristã sem um antepassado na arquitetura pagã; aliás, ambos são derivações do mesmo edifício, e estudá-lo contribuiria para notar como o Clero da época concebia o Sacerdócio e a Santa Missa, a ponto de permitir a sua incorporação na arquitetura cristã.

Com efeito, o ciborium magnum das basílicas cristãs tem clara semelhança com o atrium tetrastylum (átrio suportado por quatro colunas) greco-romano. Tal edícula era reservada às estátuas de divindades ou heróis, além abrigar rituais. Neste último caso, não faltam provas arqueológicas do vínculo estreito entre o tetrastilo e o banquete sacrifical, a ponto de toda a funcionalidade e o simbolismo do primeiro derivarem do segundo. Com efeito, o tetrastilo era a sede na qual um colégio sacerdotal deputado para o culto de uma divindade manducava a vítima — disposta sobre uma mesa —que fora antes oferecida em sacrifício. Era, portanto, um lugar místico, em que o divino e humano se encontravam no rito do banquete. Ademais, entre os séculos II e o começo do IV da nossa era, tais edículas sofreram uma evolução arquitetônica pelo acréscimo de galerias sobre as arquitraves das colunas, de estátuas e de alto relevos, o que nos remete também ao fastigium das basílicas cristãs.

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Baldaquino de Bernini (Basílica de São Pedro – Roma)

Assim, se na Basílica do Latrão identificamos uma das derivações do tetrástilo — o fastígio —, é na Basílica de São Pedro que a transição desta edícula pagã para o cibório cristão ficará mais evidente. Graças a testemunhos escritos, representações visuais e os achados da Arqueologia, é possível reconstruir como era o presbitério da primitiva Basílica, onde quatro excepcionais colunas salomônicas— isto é, em forma de espiral, semelhante às atuais do baldaquino de Bernini —, provenientes da Ásia Menor, circundavam o altar, encimadas por dois arcos cruzados. Não obstante, tais paralelos entre a arquitetura pagã e cristã não põem em risco a novidade da Revelação divina diante da falsidade dos cultos politeístas? Não estaríamos concordando com a crítica racionalista, que acusa o Catolicismo de ter assimilado o paganismo?

Certamente não. Primeiramente, o cibório ou o fastígio não são uma reprodução exata do tetrastilo, este é apenas um antecedente arquitetônico de estruturas que surgiram no Cristianismo e por causa deste. Enquanto o tetrastilo era confeccionado em pedra — sem revestimento em metais nobres—, de baixa altura e ao céu aberto, o cibório era revestido frequentemente de prata, dentro da igreja e de grandes dimensões. Nota-se claramente a intenção de honrar o altar, e não mais de abrigá-lo das intempéries. Comenta São Germano, Patriarca de Constantinopla[2] († 733-740):

O cibório representa aqui o lugar onde o Cristo foi crucificado, pois o lugar onde ele foi enterrado estava nos arredores e foi elevado sobre a sua base. Ele [o cibório] foi incluso na igreja a fim de representar concisamente a crucifixão, o sepultamento e a ressurreição de Cristo. Semelhantemente, ele corresponde à arca da aliança do Senhor, na qual está escrito que é o seu Santo dos Santos e seu lugar santo.

Assim, a Liturgia católica assimilou uma estrutura, mas não uma teologia pagã, mesmo porque, como bem lembra São Germano, no Antigo Testamento, protótipo do culto cristão, o Santo dos Santos também era delimitado por quatro colunas (cf. Ex. XXVI, 31-33). Quando a Igreja pôde finalmente erigir suas igrejas, foi o Imperador quem doou o fastígio do Latrão e mandou fazer a Basílica de São Pedro, de modo que o tetrastilo foi simplesmente reinterpretado dentro de um novo contexto, o da arquitetura cristã. Assim, ao invés de ameaçar a originalidade e a pureza da doutrina católica, o reaproveitamento do tetrastilo apenas reafirma a identidade desta doutrina: a Igreja não teria permitido o fechamento e a separação do presbitério com o fastígio e a cobertura do altar pelo cibório se o uso de tais elementos arquitetônicos não estivesse associado anteriormente a um banquete sacrifical e a um colégio sacerdotal. Com efeito, apesar do politeísmo dos romanos, subsistiam aí elementos da religião natural — o dever de todo o homem de prestar culto a Deus, como fez Abel e Melquisedeque —, que a Igreja de Nosso Senhor elevou a uma dignidade superior ao reaproveitá-los para o culto do Novo Testamento. Em outras palavras, a arquitetura greco-romana serviu para honrar a doutrina do Sacrifício eucarístico e do Sacerdócio ministerial.

O longo e penoso percurso deste artigo não deve interessar somente os curiosos e estudiosos de Liturgia. Por mais que não haja uma prova cabal de que o cibório descenda necessária e diretamente do tetrastilo greco-romano, esta hipótese, que nos parece bastante verossímil, serve muitíssimo na defesa da Tradição contra os pretensos “retornos à Igreja primitiva” ou à “pureza primitiva” que tanto diferem daquelas verdades de Fé que a Hierarquia católica sempre reafirmou nos seus Concílios e definições magisteriais. Mais uma vez, não estamos diante de “estruturas tridentinas”, mas da paleo-basílica romana, cuja arquitetura é o berço do mesmo Rito da Missa que São Pio V não fez mais que ratificar.

 

Pe Ivan Chudzik

[1]    O termo “baldaquino” não é sinônimo de cibório, apesar do seu uso frequente ter apagado as diferenças. Enquanto o cibório é uma construção de pedra ou outra matéria sólida, o baldaquino consiste num dossel ou tenda em tecido.

[2]    On the Divine Liturgy, n. 5. Disponível em: <http://www.ldysinger.com/@texts/0720_germanus/02_div-liturgy.htm>.

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