Introibo ad altare Dei: o desenvolvimento do altar no Rito Romano

Em nosso último artigo tratamos do desenvolvimento do Rito Romano a fim de introduzir o leitor nas diferentes modalidades de celebração (Missa solene, Missa cantada, etc.) e distingui-las da pompa exterior (relicários, flores, número de velas acesas, etc.), que nem sempre acompanha tais modalidades em virtude do costume local ou simplesmente dos poucos recursos da igreja em que se celebra. Para aprofundar tal estudo, nada mais oportuno do que considerar desta vez o elemento mais fundamental da Liturgia e principal de qualquer igreja, o qual a própria pompa quer adornar e honrar particularmente: o altar.

Para a era apostólica, o altar era o local do sacrifício e da manducação da vítima oferecida, à semelhança do Templo de Jerusalém, pois o termo grego que São Paulo emprega para tratar do altar do Templo (em I Cor. X, 18) e do altar eucarístico (em Hb. XIII, 8) é o mesmo: thusiasterion, o “sacrificatório”, literalmente. Neste mesmo sentido, os Padres da Igreja chamavam o altar de “mesa sagrada” ou  “mesa do Senhor” porque ali o Cordeiro era imolado e dado em Comunhão. Provavelmente a mesa escolhida para se tornar “mesa do Senhor” era, desde aquele tempo, o “tribadion”, mesa trípode comum no mobiliário patrício, que era preparada pelos diáconos para os Santos Mistérios. A representação mais antiga de um tribadion servindo como altar é o afresco da “capela dos Sacramentos” da catacumba de São Calisto, do século III.

O Apocalipse menciona abundantemente o altar ao revelar a Liturgia celeste. O altar é de ouro (cf. Apoc. VIII, 3; IX, 13) e está diante do Trono de Deus; um Anjo, com um turíbulo de ouro, oferece perfumes, junto das orações dos santos, descrição que recorda a oração Supplices te rogamus do Cânon romano. Sob o altar estão as almas dos mártires (cf. Apoc. VI, 9), clamando por justiça por causa do seu sangue derramado. Com efeito, não se sabe exatamente se o costume de se celebrar Missa sobre as relíquias dos mártires nasceu naquele tempo—pelo fato de São João também encontrar os mártires sob o altar do Céu—ou se a Liturgia terrestre rapidamente quis imitar o que foi revelado da celeste. Fato, porém, é que a Missa foi celebrada nas catacumbas dentro de um “arco sólio” (monumentum arcuanum), isto é, um arco ou nicho cavado na rocha sobre a tumba de um mártir, sobre o qual se punha uma pedra de mármore, a mesa que abrigava os Santos Mistérios. Alguns estudiosos duvidaram do uso do arco sólio para a celebração Santa Missa, alegando ausência de provas históricas. Ora, aceitar o uso litúrgico do arco sólio é admitir que o sacerdote desde sempre celebrou “de costas” para a assembléia. Para evitar uma tal conclusão seria preciso supor altares de madeira nas catacumbas, o que nos introduz num outro problema: o altar de São Pedro.

Em Roma, São Pedro se hospedou e celebrou Missa na residência de Pudente, discípulo de Paulo, citado na primeira epístola a Timóteo.1 Como era o altar do príncipe dos apóstolos? O testemunho mais antigo deste altar é a “tabula magna” (grande tabela) do século XIII, inventário das relíquias da Basílica do Latrão, que o enumera em primeiro lugar com as seguintes palavras: “altar de madeira, que os santos pontífices e mártires de Deus tiveram desde os tempos dos apóstolos, sobre o qual celebravam Missas nos subterrâneos e diversos lugares escondidos por causa da violência iminente da perseguição”. Segundo o cronista medieval Martinho de Opava (†1278), o altar de São Pedro era semelhante a uma arca, com quatro argolas nos ângulos para a entrada de hastes, a fim de ser transportado por quatro presbíteros até o local onde se reuniriam os cristãos para os Santos Mistérios. Com efeito, se um altar transportável de madeira convinha muito para aqueles tempos de perseguição, entre os poucos vestígios que chegaram até nós e as descrições tardias das crônicas há margem suficiente para muitos erros. Não obstante, tudo indica que o primeiro altar da primeira igreja de Roma, a Arquibasílica do Santíssimo Salvador no Latrão, fosse o de São Pedro, apenas trazido da residência de Pudente onde normalmente ficava, razão pela qual o altar papal da Basílica do Latrão, e por extensão o das demais Basílicas maiores, era até pouco tempo reservado ao Santo Padre—segundo a crônica de Martinho de Opava, desde São Silvestre I—, em memória de São Pedro e seus sucessores, que sempre celebraram sobre o mesmo altar. Atualmente, a relíquia do altar de São Pedro se encontra dentro do altar de mármore da Basílica. Se o altar de São Pedro era de madeira, nada permite concluir que arcas de madeira eram instaladas nas catacumbas, em detrimento do arco sólio.

Não se sabe ao certo quando foi confeccionado o primeiro altar de pedra, tampouco quando se consagrou pela primeira vez um altar. Anastásio bibliotecário (†880) cita um decreto do Papa Santo Evaristo (†105 aprox.), segundo o qual os altares seriam dora diante de pedra e consagrados. A crônica de Martinho de Opava, por sua vez, também cita um outro decreto, desta vez do Papa São Silvestre I (†335), ordenando que não se celebrasse mais os Santos Mistérios em altares de madeira. Ora, se não se pode provar a autenticidade destes decretos—citados apenas por cronistas tardios—, é certo, porém, que os altares de pedra remontam seguramente aos primeiros séculos. O Pseudo-Dionísio diz na “Hierarquia eclesiástica”, no capítulo segundo, que os altares sempre foram de pedra na Grécia. Fazendo-se abstração da sua autenticidade—segundo o próprio autor, o convertido por São Paulo no areópago; para a crítica moderna, um teólogo bizantino sírio do final do século V ou início do VI—, o que importa nesta fonte é considerar a existência de usos paralelos: altares de pedra são talvez tão antigos quanto os de madeira, e não apenas os “sucessores” destes numa lógica racionalista. É provável que a vasta igreja de Neo-Cesaréia construída por São Gregório Taumaturgo, em 245, comportasse altares de pedra. São Gregório de Nissa e São João Crisóstomo, no século IV, citam altares de pedra. Não obstante, o primeiro documento autêntico ab-rogando o altar de madeira remonta ao Sínodo de Epaune, em 517, na Borgonha.

O Liber Pontificalis cita um decreto—de autenticidade disputada—do Papa São Félix I (†274), o qual ordena que a Santa Missa seja celebrada sobre as relíquias dos mártires (memorias martyrum). Fato é que, no século IV, cessando as perseguições contra os cristãos, o culto dos mártires cresceu exponencialmente, erigindo-se altares de pedra de todo o tipo, dentro e fora das catacumbas. Novamente, se a construção de altares com os corpos dos mártires nas catacumbas é posterior ao século IV, isso não induz a existência de arcas de madeira nos séculos anteriores. Aliás, os altares de pedra serviram para a eliminação da prática pagã de se deixar comida no túmulo dos falecidos: dora diante os Santos Mistérios não seriam mais celebrados sobre o túmulo, no arco sólio, mas em um altar propriamente, mas sempre contendo as relíquias dos mártires.

A Igreja preferiu a pedra pela sua durabilidade—os donatistas chegaram a queimar e destruir altares de madeira na África—, mas sobretudo porque, como disse São Paulo: “petra autem erat Christus” (I Cor. IV, 10). O altar de pedra representa melhor o Cristo, de quem é símbolo. Se no Antigo Testamento os sacrifícios foram oferecidos sobre um altar por um sacerdote, no Novo Testamento o altar, a vítima e o sacerdote são a Humanidade de Nosso Senhor. E se o altar representa o Cristo, nada mais consequente do que querer honrá-lo com particular riqueza. Assim, lê-se no Liber Pontificalis que Constantino doara sete altares de prata para a Basílica do Latrão; os Papas São Sixto III (†440) e Santo Hilário (†468) também presentearam várias igrejas romanas com altares de prata. Santa Helena introduziu altares de ouro, com pedras preciosas, na igreja erigida sobre o local onde a cruz foi encontrada. A irmã do imperador Teodósio II, Pulquéria, doou um altar de ouro para a Basílica de Constantinopla.

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Ravena: Abel e Melquisedeque diante de um altar (sec. VI)

 

 

Muito mais do que se chegar a conclusões certas em um domínio tão delicado como a Arqueologia cristã, o que mais importa neste primeiro estudo sobre o altar é constatar a continuidade que subsiste entre o culto dos primeiros cristãos e o Rito Romano tal qual a tradição nos legou: a Liturgia “de costas” para a assembléia, a preferência por altares de pedra, o culto das relíquias e a ornamentação rica dos altares. Com efeito, a Igreja só pôde solidificar seu culto com o fim das perseguições; mas se “a lei da oração é a lei da Fé” (lex orandi lex credendi), supor que o culto cristão era substancial ou consideravelmente diferente do culto que recebemos por tradição é acusar a Igreja de ter causado uma revolução que a distanciou dos verdadeiros ensinamentos de Nosso Senhor. Assim, o desprezo pelo Rito Romano tradicional nos faz entrar na mesma lógica de Lutero, e da lógica de Lutero fácil é passar para a lógica dos racionalistas, segundo a qual a Igreja meramente copiou o culto dos pagãos e fez do “Jesus histórico” o “Jesus da Fé”. Na verdade, o Rito Romano é o legítimo herdeiro das mais tenras práticas cristãs, que encontram nele o seu ápice e o seu termo.

 

Pe Ivan Chudzik

 

  1. “Saúdam-te Eubulo, Pudente, Lino, Cláudia e todos os irmãos.” (II Tm. IV, 21)
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