Eis o que diz Nosso Senhor aos seus discípulos: “Sereis entregues até mesmo pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos”. É justamente diante da ameaça de morte vinda de seus próprios parentes que começa o comovente relato de Muhammad Moussaoui, um muçulmano xiita, a respeito do processo de sua conversão ao catolicismo, sobre o qual vai depois dizer: “(…) há um preço a pagar, e quanto ao que me diz respeito, esse preço não é nada barato…”. De fato, o preço não foi barato, pelo menos não como foi para a maioria de nós, ocidentais, acostumados a uma sociedade que mantém, ainda que debilmente, raízes católicas. Pelo contrário, o autor estava envolvido pela “Xaria” (lei islâmica) e por toda a rígida estrutura sociocultural que brotava do islã no Iraque, a qual, como nos faz compreender o autor, torna uma conversão praticamente impossível, uma vez que sobre os que abandonam o islã paira uma sentença terrível: a morte.
A história de Muhammad está repleta de pequenos “milagres”, graças atuais que Deus não nega àqueles que O buscam com o coração sincero. Um deles merece um especial destaque: O autor, que durante a vida nunca havia tido um sonho do qual fosse capaz de lembrar-se no dia seguinte, finalmente conseguiu fazê-lo: Estava à margem de um rio e via, na outra margem, um homem que ao dar a mão para ajudá-lo, disse-lhe: “Para atravessar o rio, precisa comer o Pão da Vida”. Que palavras misteriosas para um muçulmano! Até que convivendo com um cristão na caserna e recebendo dele suas primeiras lições de catequese, começa a questionar a razoabilidade da fé muçulmana ao ponto de corajosamente abrir o evangelho de São João e reencontrar no capítulo seis, as mesmas palavras misteriosas do sonho: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome”, Tal reencontro gerou, nas palavras de Muhammad, como que um raio, “um sentimento de força inaudita, uma paixão quase violenta e amorosa por esse Jesus Cristo de que os evangelhos falam”. Esse acontecimento torna-se a partir de então o combustível do qual vai haurir a força necessária para percorrer o longo e difícil caminho do qual tinha a consciência de que deveria percorrer até o tão desejado dia do batismo, quando poderia finalmente se aproximar do “pão da vida”.
Ao retornar ao seio familiar depois de servir o exército, vê-se obrigado a ocultar a novidade da conversão à família, e inicialmente, mesmo de sua esposa, que por causa do testemunho do marido e de um sonho no qual encontrava uma “bela Senhora”, não tardou em acompanhar o marido rumo à religião católica.
Foi dolorido e decepcionante para Muhammad encontrar algumas vezes, durante suas ansiosas andanças pelos bairros cristãos, as portas da Igreja local fechadas para ele, ao ponto de desmotivá-lo. A situação é de certo modo compreensível, uma vez que o proselitismo é proibido no Iraque sob pena de morte. Apesar disso, é preciso afirmar que a Igreja não abandonou o mandato de Nosso Senhor, pois que durante todo seu caminho ele encontrou o apoio material e espiritual de padres, que bem conscientes dos riscos, conformaram-se ao Bom Pastor que abandona as noventa e nove ovelhas e sai em busca da que está perdida. Também as religiosas e os leigos deram testemunho de que a Igreja, não obstante as perseguições e a imensa crise de fé pela qual passa, não somente sobrevive, mas cresce!
Inevitavelmente o sofrimento iria chegar. Só não se esperava que fosse da forma como chegou: pelas mãos do próprio filho que ingenuamente fez o sinal da cruz diante dos tios, os quais, já tendo desconfiado dos novos comportamentos de Muhammad, haviam invadido a sua casa e encontrado um volume da Sagrada Escritura escondido. O calvário que se seguiu foi intensificado pela dor profunda que brotava do conhecimento de que todo aquele sofrimento que se seguira desde então era causado pela própria família.
Depois de sofrer as mais terríveis perseguições e impossibilitado de permanecer em seu próprio país, buscou, juntamente com sua esposa e seus filhos, o exílio na Jordânia, país vizinho ao Iraque e bem mais tolerante aos Cristãos, onde encontrou finalmente uma verdadeira família em uma pequena comunidade cristã, inflamada daquela caridade que marca aqueles que se propõem a seguir Nosso Senhor. Pôde, finalmente, desfrutar de relativa paz, de liberdade para ir à missa e de trabalhar dignamente como sacristão. No entanto, uma prova final e decisiva o aguardava. Sua família, que permanecera no Iraque não iria aceitar sua conversão passivamente.
Então retornamos ao início do livro, quando diante da ameaça de morte, talvez lhe fosse requerido aquele ato de virtude próprio dos mártires: derramar o próprio sangue pela Fé, por Nosso Senhor Jesus Cristo. Nesse momento, quando parecia que as forças humanas e mesmo as esperanças chegariam ao fim e tudo estaria consumado, surge então uma oportunidade para um outro “milagre”, não tão pequeno como aquele sonho do qual falamos anteriormente, mas um milagre propriamente dito, capaz de converter inclusive um médico cético e que certamente ficará registrado nos corações daqueles que decidirem se aventurar pela história de Muhammad.
É impossível não lembrar-se de Nosso Senhor referindo-se ao centurião romano: “Em verdade vos afirmo que nem mesmo em Israel achei tamanha fé” (Mt 8,10) – e não corar diante do imenso amor de Deus manifestado claramente nessa história. Poderia, finalmente, parecer que depois de tudo que passou, o autor poderia vangloriar-se de que sua missão foi cumprida, de que guardou a fé mesmo nas piores dificuldades, mas ele humildemente reconhece que ainda existe uma batalha por vencer, e talvez a mais dura: vencer-se a si e perdoar sua família.
Da mesma forma pode parecer a nós que a aparente liberdade da qual goza o catolicismo em nosso país, se ela ainda existe de fato, torna nossa missão de soldados de Cristo bastante simples, ou pelo menos não tão exigente como a de Muhammad, ao ponto de não ansiarmos pelo “pão da vida” como deveríamos, de não rezarmos como deveríamos, de não fazermos apostolado como deveríamos. Àqueles que decidirem conhecer a história desejo que recebam, se não o “raio” mencionado pelo autor, ao menos um facho daquela luz que o fez compreender que o preço das dores, perseguições e mesmo da morte para chegar até “o outro lado do rio”, valia a pena, porque Aquele que dá a mão, não abandona jamais os que n’Ele confiam, como bem disse São Paulo: “Quem nos separará do amor de Cristo? Tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, espada? (…) Mas em tudo isso somos mais que vencedores, graças àquele que nos amou” (Rm 8, 35.37).
Júlio Guerra