A Quaresma são os quarenta dias de penitência pelos quais a Igreja se prepara para celebrar a Festa da Páscoa. Sua instituição remonta aos primeiros tempos do Cristianismo. O próprio Nosso Senhor Jesus Cristo a inaugurou pelo seu exemplo, jejuando quarenta dias e quarenta noites no deserto e, se Ele não quis na sua suprema sabedoria, transformá-la em um mandamento divino, que assim não seria mais suscetível de dispensa, Ele pelo menos declarou que o jejum imposto tão frequentemente por ordem de Deus, no Antigo Testamento, seria praticado pelos filhos da Nova Lei.
Um dia os discípulos de João se aproximaram de Jesus e disseram: “Porque, enquanto nós e os fariseus jejuamos frequentemente, seus discípulos não jejuam?” Jesus se dignou responder: “Os filhos do esposo podem estar de luto enquanto o Esposo está com eles? Virá um tempo em que o Esposo lhes será tirado e então eles jejuarão.” Em seguida vemos no livro dos Atos dos Apóstolos os discípulos do Senhor, depois da fundação da Igreja, jejuar e recomendar o jejum aos fiéis nas Epístolas que dirigem à eles.
A razão dessa conduta é fácil de compreender: O homem permanece pecador, mesmo depois do cumprimento dos mistérios divinos pelos quais Cristo operou nossa salvação e, por isso, a expiação ainda é necessária. Por essa razão, os Apóstolos, vindo em socorro da nossa fraqueza, estabeleceram desde o começo do Cristianismo, que a solenidade da Páscoa seria precedida de um jejum universal, e determinou-se naturalmente para esse período o número de quarenta dias que Cristo deixara como exemplo. A instituição apostólica da Quaresma nos é atestada por São Jerônimo, São Leão Magno, São Cirilo de Alexandria, Santo Isidoro de Sevilha, entre outros.
Não é de se espantar que um período tão sagrado como é a Quaresma seja cheio de mistérios. A Igreja que a erigiu como a preparação para a mais sublime das festas, quis que esse período de recolhimento e de penitência fosse marcado pelas circunstâncias mais propícias a despertar a fé dos fiéis e sustentar a constância na obra da expiação anual.
No tempo da Septuagésima, nós encontramos o número septuagenário, que nos lembrava os setenta anos de cativeiro da Babilônia, depois do qual o povo de Deus, purificado da sua idolatria, deveria rever Jerusalém e aí celebrar a Páscoa. Agora é o número severo de quarenta, que a Igreja propõe à nossa religiosa atenção, esse número que, como nos diz São Jerônimo, é sempre o número da pena e da aflição.
Lembremo-nos dessa chuva de quarenta dias e quarenta noites, tirada dos tesouros da cólera de Deus, quando Ele se arrependeu de ter criado o homem, e que Ele submergiu a raça humana nas torrentes, à exceção de uma única família. Consideremos o povo hebreu andando sem rumo quarenta anos no deserto, como punição da sua ingratidão, antes de poder entrar na terra prometida. Escutemos o Senhor que ordena ao profeta Ezequiel de permanecer deitado quarenta dias sobre o seu lado direito, para figurar a duração de um cerco que seria seguido da ruína de Jerusalém.
Dois homens, no Antigo Testamento, têm a missão de figurar em suas pessoas as duas manifestações de Deus: Moisés, que representa a Lei, e Elias no qual é simbolizada a Profecia. Ambos se aproximam de Deus: o primeiro no Sinai, o segundo sobre o Horeb; mas tanto um como o outro só obtêm o acesso a essa proximidade com a divindade depois de terem se purificado pela expiação, com um jejum de quarenta dias.
Fazendo menção desses fatos, nós conseguimos compreender porque o Filho de Deus encarnado para a salvação dos homens, tendo decidido submeter a sua carne aos rigores do Jejum, escolheu o número de quarenta dias para esse ato solene. A instituição da Quaresma assim considerada nos mostra toda a sua majestosa severidade, sendo um meio eficaz de aplacar a cólera de Deus e de purificar nossas almas.
Elevemos assim nossos pensamentos acima do estreito horizonte que nos cerca; vejamos todo o conjunto dos cristãos nesses dias em que nos encontramos, oferecendo ao Senhor irritado essa vasta quarentena de expiação e esperemos que, como na época de Jonas, Ele se dignará, ainda esse ano, ter misericórdia do seu povo.